UMA NOVA CONSTITUIÇÃO E UM IMPÉRIO DE DEZ MIL ANOS
A ficção nos inspira e nos ensina. Será que a série Guerra nas Estrelas poderia falar também sobre golpes ditatoriais e resistência?
Há algum tempo escrevi um artigo para falar sobre como o cinema nos ensina sobre arbitrariedade, totalitarismo, demagogia, ditadura e muitos sequer se dão conta.
Quem já assistiu à série de filmes Guerra nas Estrelas (Star Wars), e quem não viu se prepare para spoiler, talvez se lembre da cena no Episódio III - A Vingança do Sith, na qual o Senador Palpatine (na verdade o Lorde Sith, senhor do mal), perante o Senado intergaláctico, acusa os jedis de tentarem derrubar a República e, em seu discurso, propõe a transformação da forma de governo em império, com ele como imperador com poderes máximos (claro), no intuito de destruir toda a ordem jedi e os seus cavaleiros e eliminar essa ameaça à paz.
Segue trecho de seu discurso:
Os Jedi, e alguns dentro de nosso próprio Senado, conspiraram para criar a sombra do separatismo usando um deles mesmos como o lider inimigo. Eles tinham a esperança de triturar a República em ruínas. (…) O atentado contra minha vida me deixou ferido e deformado, mas eu lhes asseguro que minha resolução nunca foi mais forte.
A fim de garantir a segurança e estabilidade da nossa sociedade, esta República será reorganizada como o primeiro Império Galáctico, por uma sociedade segura e a salvo, o qual eu lhes asseguro irá durar por dez mil anos. Um Império que continuará a ser governado por este augusto corpo e um governante soberano escolhido para toda a vida. Um Império governando pela maioria, governado por uma nova constituição.
Assim, uma república que durara 25 mil anos fora transformada subitamente em império, com os poderes concentrados na mão de um ardiloso conclave político que, apesar dos belos discursos e das atitudes aparentemente éticas, que diz governar em nome da maioria, tramara tudo nos bastidores usando o próprio sistema a seu favor.
Ao ver esta desolação, a princesa Padmé exclama: “então é assim que morre a liberdade, sob estrondosos aplausos”.
Não se assuste. É só um filme, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, deixando claro que de maneira alguma busco comparar uma obra de ficção e seus personagens com pessoas reais, mas apenas ilustrar a fragilidade do sistema em qualquer lugar e como ele pode ser facilmente sequestrado pela retórica demagógica.
A boa ficção é muito mais do que passatempo, ela nos ensina, nos inspira, nos eleva.
Os cavaleiros jedis, como todos os que assistiram Star Wars sabem, são guardiões da paz e da justiça e dedicam-se ao lado da luz da Força, em oposição às trevas. A derrocada da Ordem Jedi aconteceu porque baixaram a guarda depois de acreditarem, prematuramente, que haviam derrotado o lado das trevas.
Sem a força dos jedis e diante da farsa de golpe contra a República, instalou-se uma ditadura sob efusivos aplausos, uma “ditadura democrática”, como se o chicote com purpurina estalasse de forma menos pungente.
O recado dado pelos primeiros filmes é claro: um sistema legal vale tanto quanto as pessoas estiverem dispostas a confiarem na palavra dada umas às outras e a cumpri-las.
Hannah Arendt, a filósofa que escapou do Holocausto nazista, ensina que um dos antídotos para a instabilidade da conduta humana é a promessa, a garantia de que aquilo que foi estabelecido será cumprido. Sabia Arendt que a natureza humana era volátil, ora desejando uma coisa, ora outra.
Extrapolando esse raciocínio, as leis são promessas feitas e nas quais a população que vive em certo país credita e acredita, ou seja, valida e confia.
Um país no qual as autoridades não garantem a estabilidade da Constituição e das leis não é um país, é antes um agrupamento de pessoas que não confiam umas nas outras, nem no Estado.
Sabem que esse Estado só as espolia, só toma o seu dinheiro para fins menos que nobres, e que não estará lá para garantir seus direitos, e por não ter essa segurança estatal da garantia dos direitos, representada o mais das vezes pelo Judiciário, também não confiam umas nas outras.
Diante da instabilidade, o cidadão sabe que tem que tirar o máximo de proveito a cada momento. E como não existe lei, a impunidade sempre ganha. Há um clima de medo e de desconfiança, próprio para parasitas sociais, arrivistas e corruptos.
É nesse clima de medo que surgem “imperadores" dizendo que o problema é o excesso de liberdade das pessoas, especialmente daquelas que criticam e que se opõem a esse estado de coisas. São taxados de “traidores da república”.
Os jedis, lembremos, defendem acima de tudo os valores que permitem uma vida pacífica e coesa, notadamente a justiça.
Ora, a nenhum oportunista a paz interessa, muito menos a justiça. Os melhores negócios são feitos quando as pessoas estão com medo, desesperadas por um salvador.
Diante do cenário de instabilidade que os lordes Sith criam, qual a solução que eles mesmos oferecem?
A solução é sempre acabar com o regime de promessas, dar um basta ao “velho sistema” e dar as boas-vindas ao “novo normal”, permitindo que apenas um grupo seleto decida o destino do país de forma casuística, sem obediência às leis escritas, baseando-se em "princípios" e "valores" “democráticos”, digo, imperiais, para proteger o povo da “ameaça jedi”, tal qual nos ensina o senador Palpatine.
Aliás, o mesmo senador que, quando lhe foi dito que certa matéria seria levada à deliberação do senado, afirmou: “Eu sou o Senado”, tal qual Luís XIV, o monarca absolutista, diria: “O estado sou eu”, isto é, não há diferença entre a vontade do governante e a vontade do estado que ele governa.
Esse grupo seleto faz e desfaz as promessas de acordo com a conveniência, os textos de lei são só adereços cenográficos para ensaiar a farsa cujo ingresso para a plateia entorpecida é o preço mais caro que alguém pode pagar: sua liberdade.
Na trilogia inicial, a princesa Padmé, quando vê como a sucessão dos eventos parece conduzir a uma ditadura, ainda se pergunta: “E se a democracia à qual pensávamos servir não mais exista, e a República tenha se tornado o próprio mal que lutávamos para destruir?”.
Spoiler de novo, embora não seja segredo, a República caiu e foi substituída por um império do mal, com a erradicação de toda a resistência, salvo por um punhado de rebeldes que se nega a aceitar essa ditadura e resiste na esperança de que outros também acordem.
A maioria dos rebeldes, aliás, não tem qualquer habilidade extraordinárias, são só pessoas dispostas a não aceitar ordens de ditadores.
É o mestre Yoda quem sempre dá as melhores lições. Mesmo diante da queda inevitável, em um certo momento ele diz: “em um lugar escuro nos encontramos, e um pouco mais de conhecimento ilumina nosso caminho”.
Conhecimento isento é essencial. Ver os fatos como eles são é o primeiro passo: sem paixões, sem ideologias, sem esperanças ou viés de confirmação. Somente as coisas como elas são, porque é só vendo senador Palpatine como o Lorde Sith, o imperador do mal, é que qualquer ação fará sentido.
Allan Moore escreveu, dentre tantas obras memoráveis, “V de Vingança”, e em um certo momento dessa hq uma personagem encarcerada pelo que ela acredita ser um regime totalitário encontra uma texto escrito por outra prisioneira, da qual transcrevo alguns trechos:
“(…) minha integridade era mais importante. Isso é egoísmo? Pode não ser muito, mas é tudo o que nos resta aqui. São nossos últimos centímetros. (…) É estranho que minha vida possa acabar neste lugar horrível, mas, por três anos, eu recebi rosas e não tive que prestar contas a ninguém. Eu vou morrer aqui. Cada centímetro de mim morrerá… exceto um. Um só. É pequeno e frágil e é a única coisa do mundo que ainda vale a pena se ter. Não devemos jamais perdê-lo, vendê-lo ou entregá-lo. Não podemos deixar que alguém tire de nós".
Só podemos controlar duas coisas: nossas ações, e isso só até praticá-las, porque não temos poder sobre suas consequências, e nossa forma de reagir ao mundo.
Ninguém pode, sozinho, destruir um império, mas pode, sozinho, não se submeter. E a soma de insurgências que se reconhecem cria a reação ao império em Star Wars a que nem a Estrela da Morte, uma arma do tamanho de um planeta, pôde resistir.
Essa forma de reagir ao mundo é o centímetro de dignidade que só podem tomar de você se permitir.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.