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Sobre Justiça e trevas

Eduardo Perez
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Sobre Justiça e trevas

Buscar a Justiça é lidar com as trevas. Esse é o trabalho da Magistratura.

Da mesma forma que o médico estuda a doença para preservar a saúde, anos de profissão e muitas decepções fazem-me crer que o juiz estuda e trabalha com a escuridão para entregar e preservar a luz.

Embora pareça que os magistrados estudem as leis para isso, na verdade elas são só a ferramenta nessa tarefa de Síssifo.

Como um escultor, o juiz labora sobre o bloco de trevas da condição humana. Cada processo é uma situação de injustiça posta para seu exame: injustiça contra a vítima, se o réu é culpado, injustiça contra o réu, se inocente e o processo lhe é penoso, porque lento. E não há como perpetuar mais uma condição de absoluto negrume que com a absolvição de um culpado ou, horror dos horrores, a condenação de um inocente.

É a briga pela guarda dos filhos no fogo cruzado dos pais ou parentes e a prática da alienação parental. É a criança vítima do estupro que violou seu corpo e alma, a inocência roubada que não há pena que pague. É o doente sem leito de hospital. É a empresa ou o estado que precisa se defender de um oportunista que usa o Judiciário para tentar se beneficiar por algo indevido.

Há uma miríade de situações. E são tão incontáveis que, no Brasil, como em nenhum outro lugar do mundo, existem mais de cem milhões de processos. Isso ocorre porque, como Diógenes modernos, aos juízes foi delegada indiretamente a função moral, mais que legal, de procurar um homem honesto com uma lamparina. Tudo, absolutamente tudo, inclusive políticas públicas, é levado ao Judiciário.

De fato, somente a escuridão da ignorância vence a da injustiça, porque mãe de todos os vícios. Ao juiz cabe, em toda sua limitação humana e falta de condições legais e estruturais, lançar uma luz sobre esses recônditos para (tentar) restabelecer a justiça.

Há mais de dois mil anos já considerava Aristoteles o juiz a personificação dessa mesma justiça, pois, “ir ao juiz é ir à justiça, porque se quer que o juiz seja como se fosse a própria justiça viva(…)” (ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo. Nova Cultural: 1996 p. 200).

Sem luar, na noite escura da alma brasileira, nada mais triste do que ver apenas fogos-fátuos, vagalumes de luzes intermitentes logo tragadas pelas trevas absolutas da corrupção, do compadrio, do interesse egoísta, da malícia, da perseguição ideológica, da preguiça.

Macunaíma se apressa em apagar qualquer vela que possa atrapalhar seu sono ébrio. É claro. Como na caverna de Platão, a luz incomoda a quem se acostumou com o escuro, do mesmo modo que qualquer mudança é uma oposição à inércia.

Diferentemente da política, onde se admitiu, ainda que indevidamente, a prevalência de interesses particulares sobre o que é certo, é impossível conciliar justiça à conveniência: ou é ou não é. Se não for, será injustiça.

Não deve o magistrado agradar a todos. Aliás, sua preocupação não é agradar a quem quer que seja, tão-somente lançar luz sobre as trevas e deixar que se veja o que deve ser visto. Justiça não é um jogo de interesses, é um reconhecimento de mérito, conforme a visão aristotélica: dar a cada um o que é seu, considerando as desigualdades nessa equação.

Ao canalha interessa beneficiar-se de sua torpeza e manter-se impune. Como isso pode ser justo? O juiz preocupado em atender aos novos tempos de uma geração floco de neve hiperbolizada em direitos e atrofiada em deveres, em colocar-se junto às partes em uma mesa redonda, equivalendo vítima, agressor e julgador, contribui para ampliar as trevas, nunca para dissipá-las.

O justo é o justo, e não há espaço para relativismos morais. E é preciso ter coragem de dizê-lo e mais coragem ainda de aplicá-lo.

A luz incomoda aos que dormem até tarde, assim como aos ladrões e predadores que se valem do manto da noite para perpetrar suas maldades.

A chama mais branda ainda é afiada o suficiente para dividir as trevas. Depois que  a humanidade controlou o fogo, temer a escuridão tornou-se uma escolha, e, no caso dos magistrados, permitir que a noite escura se perpetue, podendo mudar isso, é mais que desonroso.