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SEJA HERÓI OU SEJA PLATEIA

Eduardo Perez
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SEJA HERÓI OU SEJA PLATEIA

É melhor passar vergonha com as próprias forças do que seguir na claque eterna aplaudindo as vergonhas alheias.

(na foto, August Landmesser, que se recusara a fazer a saudação nazista em um evento em 1936)


“Se eu devo me tornar o herói de minha própria vida ou se esse papel será de qualquer outra pessoa, essas páginas dirão”. É assim que começa o livro David Copperfield, de Charles Dickens, autor mais conhecido aqui pelas obras Oliver Twist e Um Conto de Natal (A Christmas Carol), aquele dos fantasmas do passado, presente e futuro que visitam o Sr. Scrooge.


Mas o que nos importa é a proposta de Copperfield, em suas memórias, prometendo mostrar se foi ou não o protagonista da sua vida.


Quantos ponderam mesmo sobre isso num mundo em que tudo gira rápido e te impede de pensar?


Em tempos de evasão de privacidade e currais intelectuais fomentados pelas redes sociais, essa pergunta é mais do que relevante: é essencial.


Nos anos 80 foi lançado o filme “The Last Dragon” (O último dragão), que narra as aventuras de Bruce Leeroy, um jovem praticante de artes marciais que, em Nova Iorque, procura pelo verdadeiro mestre Sum Dum Goy a quem deve entregar um medalhão e que o ensinará o poder final.


O campo minado das redes sociais (twitter, instagram, facebook) está cheio de pretensos Bruces em busca de mestres, mas sem a mesma humildade da personagem. Antes, vestem-se de um fanatismo narcisista que explode em manifestações de idolatria ao mestre e de um ferrenho ódio aos inimigos das bandeiras que esse militante “jurou” defender.


Há aí, talvez, muito mais a loucura do insano comedor de insetos Renfield, do Drácula de Bram Stoker, em seus delírios motivados pelo maligno vampiro.


Isso porque esse carniçal do morto-vivo servia-lhe de corpo e alma. O idolatrava em troca da promessa de imortalidade e do suprimento inesgotável de insetos e ratos com os quais se alimentava de “vida alheia”.


Da mesma forma, nas redes sociais uma plêiade de Renfields se acotovelam disputando a atenção de vampiros de likes, tornando-se figurantes em sua própria história e se alimentando do que há de mais rasteiro.


É preciso tomar as rédeas da própria vida.


Isso não equivale a abandonar a interação humana ou a admiração. Sir Isaac Newton afirmava que vira mais longe porque subira nos ombros de gigantes. Agora, admirar o trabalho alheio não é abdicar da própria existência em prol dos sonhos, ou delírios, de outrem.


Causa espanto, e também um certo asco, ver a subserviência com a qual as pessoas se devotam a celebridades (políticos, artistas, influenciadores, jogadores etc etc etc), de redes sociais ou não, abrindo mão de dinheiro e, mais grave, de seu próprio tempo de vida para defendê-las, idolatrá-las, acompanhar cada passo.


É um comportamento abjeto porque o ser humano não foi criado para ser escravo e segurar espelhos para narcisos, mas para atingir a finalidade da própria vida, para descobrir-se, por mais anonimamente que isso aconteça aos olhos da mídia, embora nunca o seja aos olhos de Deus e quiçá dos que estão próximos.


Poucos podem ser um Napoleão, um Churchill ou um Martin Luther King. Mas todos, absolutamente todos, nasceram para ser quem são e, trabalhando para isso, serão únicos e irrepetíveis na história do universo.


Ouvimos muito habitualmente as pessoas se referirem aos sucessos cotidianos como “pequenas vitórias”. É um grande erro. Um general que vence uma batalha tendo à disposição milhares de soldados e artefatos de guerra é menos vitorioso do que uma mãe ou pai que, sozinho, consegue criar os filhos e dar-lhes educação e comida.


Não há nada de pequeno em empregar toda sua força física e de vontade para suportar as agruras de um trabalho monótono e cansativo para garantir o sustento de sua família.


Se aos olhos dos livros de história não serão lembrados, um pequeno esforço mental é suficiente para, por exemplo, saber que se não houvesse o agricultor, o caminhoneiro, o entregador, o padeiro e o leiteiro, também não haveria Churchill para resistir aos nazistas, como comentei nesse outro texto (o leiteiro de londres e as bombas que nos fragmentam).


Toda vida é importante. Toda existência é essencial. A consequência da ação humana é imprevisível. Um Gandhi, um São Francisco ou um Hitler não surgem espontaneamente do chão: eles existem em uma sociedade real e são influenciados e interagem com pessoas reais. E são ajudados, ou combatidos, da mesma forma.


Ser protagonista da sua vida não é tratar todo o resto do mundo como plateia, mas é existir consciente na busca de se tornar quem deveria sempre ter sido. Isso é impossível quando se abdica do protagonismo pela idolatria de outrem, seguindo-lhe os passos, defendendo suas ideias, sentindo-se pessoalmente atacado quando o ídolo é criticado, chegando ao cúmulo de copiar-lhe os maneirismos e até a aparência.


O egoísmo e o narcisismo não têm qualquer relação com o florescer da alma humana. Esse florescer é um trabalho de toda uma vida de estudos e de questionamentos, de reflexão e de devoção. Digo até o contrário, para ser alguém é preciso de compaixão e empatia. A virtude só existe onde há gente. Ninguém é virtuoso sozinho.


Como no filme The Last Dragon, Bruce Leroy descobre que o tal mestre Sum Dum Goy que procurava era na verdade um computador que repetia mecanicamente as mensagens dos biscoitos da sorte chineses. É apenas no final, quando em confronto com o vilão, que ele se dá conta de que o mestre sempre foi ele mesmo e encontra dentro de si o poder que procurava fora.


Eu sei que é muito mais fácil seguir alguém, aceitar uma cartilha de ideias prontas, ter alguém para idolatrar e também odiar todos os que são contrários. Uma camisa de time, uma religião, uma ideologia ou uma bandeira facilitam muito a vida: não ter que pensar muito, ter desculpa para tratar quem não é do meu grupo como não humano, logo, objeto da minha violência… é só seguir esse conjunto de regras mais ou menos que eu serei aceito na colmeia, talvez até receba um aceno da abelha-rainha.


Mas não foi para isso que você nasceu.


Como diz o poeta José Régio em seu poema “Cântico Negro”:


Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...


(…)



Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.


É melhor passar vergonha com as próprias forças que seguir na claque eterna aplaudindo as vergonhas alheias. Nas palavras do bardo Frank Sinatra, há muita honra em chegar ao fim e pensar:


I've lived a life that's full

I've traveled each and every highway

And more, much more than this

I did it my way


Minha sugestão é que você que me lê reflita sempre sobre a frase que abre David Copperfield: “Tenho sido o herói de minha própria vida ou esse papel tem sido de outra pessoa?”.


É saudável admirar os outros, descobrir novas ideias, maravilhar-se com a habilidade alheia. É só não esquecer de ser você mesmo.


Você é senhor da própria vida, e encerro com o poema Invictus, de William E Henley (1849-1903), na tradução de André Masini:


Do fundo desta noite que persiste 
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa; 
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.