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SE O JUIZ É SÍMBOLO DA JUSTIÇA, HÁ DE COMBATER A INJUSTIÇA

Eduardo Perez
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SE O JUIZ É SÍMBOLO DA JUSTIÇA, HÁ DE COMBATER A INJUSTIÇA

Muito se discute se os juízes combatem ou não o crime no exercício de suas funções. É de se perguntar o que os criminosos pensam sobre isso.

(a foto que ilustra o artigo acadêmico é do senhor Alexandre de Castro, pai do juiz Alexandre Martins, assassinado no combate ao crime. Atrás dele há um porta retrato com a foto de ambos abraçados)


Há uma parte dos aplicadores e estudiosos do Direito que diz que o juiz não combate o crime. Será que há razão nisso?


Veja-se o que diz Luis Greco, professor catedrático da Universidade Humboldt, em Berlim:


"Dito de forma bem genérica, penso que um juiz deve sempre agir de modo que até o perdedor tenha de reconhecer o resultado que o desfavorece. O juiz não é só juiz de quem ganha, mas principalmente de quem perde".


Certamente um livro de lógica aplicada faria mais diferença no curso de Direito do que cem livros de doutrina jurídica, que, com a devida vênia, ignora a realidade.


A figura do juiz, em milênios de história, sempre esteve relacionada com o julgamento da ação do indivíduo: se culpado, deve sobrevir o castigo; se inocente, a absolvição. Qualquer religião tem em sua estrutura a existência de uma divindade que julgará a vida de cada pessoa, conferindo-lhe a justa recompensa ou a adequada punição.


Em rápido e grosseiro resumo, é preciso considerar que nem tudo o que é legal, isto é, está na lei, é justo. As leis, portanto, podem ser justas ou injustas.


A escravidão já esteve na lei em vários momentos da história para diferentes povos, assim como a limitação dos direitos das mulheres, discriminação pela cor da pele e sexualidade. O fato disso ser legal não tornava algo justo.


Contudo, em um estado democrático de direito os valores presentes na lei estão mais ou menos alinhados à justiça, ou melhor, ao senso comum de justiça, enquanto em regimes ditatoriais, totalitários ou de exceção, normalmente não.


Hoje podemos dizer que em qualquer país minimamente civilizado falar em escravidão, tráfico de pessoas ou diminuição de direitos em razão de gênero é algo repudiado.


Nessa linha, considera-se que o crime é o fato tipificado em lei que ofende o bem protegido e gera a punição ao autor dessa ação.


Logo, o juiz alçado ao cargo dentro de um estado democrático não julga de acordo com um senso pessoal de justiça, mas em conformidade com o sistema legal vigente. É o critério da lei que define quem pratica um crime, não questões mais abstratas e controversas de justiça, senso de coletividade, dívida histórica e que-tais.


Desse modo, o raciocínio parece bastante básico: (a) se o criminoso contraria a lei e não quer ser punido por isso, (b) se o juiz aplica a lei, então, (c) o juiz contraria os interesses do criminoso.


Uma obviedade com a qual nem todos concordam, acreditando que a função do juiz seja mais a de psicólogo ou orientador social.


O magistrado combate o crime? Com certeza. Isso é um fato. Não só o crime, mas toda conduta inadequada à luz da lei, devendo, inclusive, julgar conforme a finalidade social da norma e os costumes em sua interpretação do ordenamento jurídico.


A expectativa de que aquele que contraria a lei irá aceitar a sentença condenatória porque respeita o magistrado é negar a realidade veementemente. O ser humano tem a predisposição a buscar a impunidade, e quanto mais grave a consequência, mais intensamente o fará.


Aquele que se dispõe a infringir a lei já deixa evidente que não a aceita como um todo no que tange aos seus deveres. Portanto, é inocência presumir que, sendo condenado pela prática criminosa, irá reconhecer o equívoco de sua conduta.


Se fosse assim não existiriam tantos juízes ameaçados e perseguidos. Que o diga o juiz italiano Giovanni Falcone, que em 23.5.1992 teve o carro explodido pela máfia enquanto passava por uma estrada, morrendo junto com sua esposa e três agentes de sua escolta:


"Ao lado de Paolo Borsellino, que seria assassinado dois meses depois, Falcone era protagonista do combate à máfia na Itália e jogou luz sobre o domínio que a Cosa Nostra exercia na Sicília”.   


Paolo Borsellino também era juiz.


Vamos ver o que diz o site da Fondazione Falcone sobre o juiz:


Giovannni Falcone foi um magistrado italiano que dedicou a sua vida à luta contra a máfia, sem nunca se afastar dos graves riscos a que se expunha com a sua actividade investigativa inovadora, impulsionada por um extraordinário espírito de serviço ao Estado e a suas instituições.


Como não poderia ser diferente, é usual relacionar a figura do magistrado à de combate à criminalidade.


Há um ditado popular que diz que “o bagulho é louco e o processo é lento”. Ou seja, que compensa o crime. E isso pode ser extrapolado para qualquer outra matéria. Onde o Judiciário é moroso ou ineficaz, é benéfico para o caloteiro, para o criminoso, para o devedor de pensão alimentícia, para os que tomam a propriedade alheia, para as empresas que prestam mau serviço e assim por diante.


Ao contrário (olha a lógica aí), nos locais onde a Justiça é rápida e faz pesar sua mão sobre o culpado, o cenário não é interessante para nenhum dos indivíduos citados no parágrafo anterior. Só quem gosta de um Judiciário preguiçoso, perdido em burocracia ou leniente com o crime é quem está em confronto com a lei. Para eles, juízes covardes ou que interpretam sempre a favor dos bandidos são heróis.


Não heróis no estilo Batman, como costumam ser chamados os juízes mais rígidos, porém, certamente, na ótica relativista da modernidade líquida (BAUMAN, 2001), mais próximos do Coringa.


Vamos fazer uma visita rápida a um autor moderno, e talvez por isso pouco conhecido, de nome Aristoteles, nascido na Grécia 384 anos antes de Cristo.


Em sua obra ele começa a sistematizar a questão da causalidade, ou seja, da relação entre causa e efeito (ARISTOTELES, 2010). Feita essa observação, se recortarmos bem o objeto da ação vamos obter o seguinte: a causa da ação ilícita, dentro do sistema social e legal em que vivemos, tem por efeito a aplicação da lei.


Assim, aquele que empresta dinheiro e não paga (causa) terá, por via judicial, a expropriação de seus bens (efeito). Quem mata, rouba, estupra, desvia dinheiro público (causa) encontrará na Justiça as sanções por sua conduta (efeito), após a apuração de culpa segundo o devido processo legal.


Então, se para parte dos estudiosos do Direito o juiz não combate o "crime", essa mesma conclusão não se aplica para os criminosos, pois para eles com certeza ele o faz. 


Certamente não concordavam com a tese de que o “perdedor" reconhece a decisão judicial bem feita que o desfavorece:


  • os dois bandidos que armaram tocaia e mataram o juiz Alexandre Martins, que “se destacou por investigar e combater o crime organizado no Espírito Santo”, com três tiros;


  • os criminosos que dispararam 15 tiros no carro da juíza Patrícia Acioli, matando-a, porque determinara a prisão de um grupo que teria praticado execução. Um deles, em depoimento, disse que a decisão judicial "lhe causou desconforto e insatisfação”;


  • os delinquentes que emboscaram o juiz da Vara de Execuções Penais de Presidente Prudente, José Antonio Machado Dias, o Machadinho, matando-o com dois tiros na cabeça e um no estômago, em virtude de suas decisões contra líderes do crime organizado que se encontravam presos.


É de clareza cristalina que o criminoso, salvo raras exceções, nunca vai se satisfazer com as decisões judiciais que o contrariem, já que limitam seu poder. E quanto mais alto e mais poderoso, maior a insatisfação e os meios para atingir o magistrado.


Tanto isso é verdade, ou seja, pode ser constatado, que em qualquer lugar do mundo, mas especialmente no Brasil, os juízes que aplicam a lei contra o crime organizado, contra quadrilhas de corruptos e outras figuras detentoras de poder político, econômico ou militar (armas, munições, agentes etc) são perseguidos política e institucionalmente, ameaçados, junto com suas famílias, ou até mesmo perdem suas vidas.


Não se trata de uma interpretação da realidade. É um fato e contra ele não existem argumentos.


O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece que o juiz combate, sim, o crime de forma ativa. Veja o que diz a respeito da audiência de custódia em seu site:


Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. (grifo nosso)


Se durante a audiência de custódia o juiz não se limita a analisar a regularidade da prisão e avança, de forma ativa, como agente, para analisar a existência de eventual tortura ou maus-tratos praticados pelos policiais durante a prisão, então ele, magistrado, combate o crime.


A lógica é inafastável. O juiz não pode combater o crime apenas quando o suposto autor for agente público, e fechar os olhos para outros tipos criminosos. Aliás, diante da existência de qualquer ilicitude, de qualquer natureza, o magistrado deve encaminhar  documentação ao Ministério Público, como determina o art. 40 do Código de Processo Penal.


É preciso deixar claro que o juiz não é policial, nem promotor de justiça. A sua função é julgar e aplicar a lei conforme a prova dos autos, e é nisso que se encontra o seu combate que tanto incomoda aos bandidos, seja do tipo que usa chinelo, seja do que usa terno e gravata.


O juiz não pode pender nem para qualquer lado. Ao aplicar a norma ele realiza sua função. E, mesmo diante de uma legislação que favorece o crime, há juízes espalhados em todo o país sob ameaça ou perseguidos porque nem isso os criminosos querem aceitar.


Quem contraria interesses em obediência à lei em um país onde a impunidade é a regra não pode ser bem visto mesmo.


Mas basta perguntar nas pequenas comarcas espalhadas pelo interior do país como um juiz rápido, honesto e imparcial faz a diferença em qualquer comunidade. Longe dos palácios de mármore e dos jantares caros, nos lugares em que as pessoas não sabem nada de seda e licores, a presença da Justiça, materializada na figura do juiz, tem uma força moral descomunal.


Sem desprestígio de qualquer profissão, ser juiz não é uma carreira de oito horas diárias de trabalho. Ela é constante, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, inclusive no aspecto da conduta do magistrado, porque, embora custe a alguns admitir, o magistrado personifica a lei e a ordem onde quer que esteja. O negócio é tão sério que até organização criminosa tem seus tribunais e juízes.


Resumindo de forma simples, se a função do juiz é aplicar a lei justa, entendida esta como um retorno à normalidade, e a injustiça, ou melhor, o ato violador da lei como uma anormalidade de qualquer sorte, é claro que nesse exercício ele combate a injustiça. De outra forma seria admitir que o juiz é indiferente à legalidade ou à ilegalidade, à honestidade ou ao crime, o que é não só ilógico, como ignorante.


Vale traçar um paralelo: há uma música muito bonita de Sá e Guarabyra, chamada Sobradinho, embora prefira a versão do Bíquini Cavadão,  que é um protesto à barragem de mesmo nome, na Bahia, e menciona o profeta Antônio Conselheiro que dizia que o sertão iria virar mar, o que acabou acontecendo, em parte, muito depois de sua morte, e tem por refrão:


O sertão vai virar mar, dá no coração

O medo que algum dia o mar também vire sertão


A constante diminuição da figura e do atuar do juiz num país de injustiça como o nosso me faz lembrar, com tanta tristeza, dos colegas que tombaram no exercício da Magistratura lutando, isso mesmo, lutando justamente contra o crime. E dá no coração o medo de que algum dia não haja mais Justiça nenhuma.


É com muita dor que a gente diz, parafraseando a aludida música: Adeus, Alexandre Martins, Patrícia Acioli, Machadinho… Adeus, adeus…


BIBLIOGRAFIA


ALEXANDRE MARTINS. Assassinato de juiz Alexandre completa 14 anos. Em https://www.gazetaonline.com.br/cbn_vitoria/reportagens/2017/03/assassinato-de-juiz-alexandre-completa-14-anos-1014037228.html. Acessado em 15.5.2019, às 8h31.


 ARISTÓTELES. Sobre a Alma.  Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Ed. 2010.


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed 2001.


Chi era Giovanni Falcone. Fondazione Falcone. Disponível em: https://www.fondazionefalcone.it/biografia/. Acesso em 16.6.2019.


Código de Processo Penal. Art. 40.  Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia. Em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acessado em 15.5.2019, às 8h17.


Conselho Nacional de Justiça. Em http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia. Acessado em 15.5.2019, às 8h15.


Itália relembra 27 anos da morte de Giovanni Falcone. Isto É. Disponível em: https://istoe.com.br/italia-relembra-27-anos-da-morte-de-giovanni-falcone/. Acesso em 16.6.2019.


Machadinho. Juiz-Corregedor de Presidente Prudente é morto em emboscada: Beira-Mar é suspeito. Disponível em: https://expresso-noticia.jusbrasil.com.br/noticias/140754/juiz-corregedor-de-presidente-prudente-e-morto-em-emboscada-beira-mar-e-suspeito. Acessado em 15.5.2019, às 8h34


Morte do juiz Alexandre Martins completa 15 anos. Relembre o caso! Milena Scarpati. Folha Vitória. Disponível em: https://www.folhavitoria.com.br/policia/noticia/03/2018/morte-do-juiz-alexandre-martins-completa-15-anos--relembre-o-caso. Acesso em 16.6.2019.


"Não é tarefa do juiz combater o crime”. Deutsche Welle. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/nao-e-tarefa-do-juiz-combater-o-crime,75133dba213f917ae8ac0bab2d033986geoy76gk.html. Acesso em 16.6.2019.


Patrícia Acioli. Réu diz que morte da juíza Patrícia Acioli foi tramada após prisão de policiais militares. Em https://www.terra.com.br/noticias/reu-diz-que-morte-da-juiza-patricia-acioli-foi-tramada-apos-prisao-de-policiais-militares,4618d8c06177b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html.  Acessado em 15.5.2019, às 8h32.