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QUER SER REVOLUCIONÁRIO? NÃO FAÇA DIREITO

Eduardo Perez
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QUER SER REVOLUCIONÁRIO? NÃO FAÇA DIREITO

O Direito é um curso conservador, por mais que isso irrite aos flocos de neve revolucionários, porque só existe enquanto se perpetua e segue suas regras.

O Brasil conta hoje com mais de 1500 cursos de Direito, 232 com desempenho satisfatório e, de 1212, apenas 161 obtiveram selo de aprovação da OAB (1).


Em 2010 o CNJ já dizia que tínhamos mais cursos do que a soma de todos os demais países (2), o que explica a existência de mais de um milhão de advogados no país e do triplo ou quádruplo disso de formados que não estão nos quadros da OAB (3).


Pode ser, portanto, que esse texto seja vaiado por 45 Maracanãs lotados de bacharéis que acreditam, sim, que serão eles a mudar o mundo.


Na prática todos sabem que “saco vazio não pára em pé”, logo, é preciso ter um trabalho remunerado, e que há uma glamourização do Direito como forma de ser rico, em especial nas redes sociais nas quais profissionais tiram fotos ostentando luxo em seu cotidiano, seja na advocacia, seja nos concursos públicos.


Há até fotos de antes e depois de ser aprovado, como nos antigos comerciais de televisão que ofereciam milagrosos equipamentos para deixar qualquer um sarado.


Ora, já ensinava Aristoteles que se algo é meio para outra coisa não é um fim em si mesmo (ARISTÓTELES), ou, nos dizeres de nossos avós, não se acende uma vela para Deus e outra para o diabo.


Mas façamos a concessão de que o idealismo vence a busca de segurança, para não dizer opulência, financeira e que aqueles que pretendem seguir uma carreira jurídica serão os revolucionários a modificar o mundo.


Para surpresa de ninguém, o Direito é, ou deveria ser, um curso conservador, tanto quanto a Medicina e a Engenharia.


Nesse momento, enquanto milhares de olhos rolam em suas órbitas, cheios de lágrimas de ódio e justiça social, e mãos trêmulas buscam celulares para denunciar o fascismo do autor desse artigo, explico: quem trabalha com o Direito lida com um sistema jurídico vigente e tem por função dar vida a essas normas, para isso deve conservá-las.


Em seu juramento o advogado diz que irá defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado e a boa aplicação da lei. Quem ingressa em carreira pública jura cumprir a Constituição e as leis do país.


Para ficar mais didático, vamos imaginar um jogo de futebol: onze jogadores de cada lado e um árbitro, além dos dois bandeirinhas. Todos conhecem as regras do jogo: bola só no pé, as linhas delimitam a arena da partida etc.


Mas não só eles. Também os comentaristas e os telespectadores sabem o que esperar de uma partida de futebol. 


Qualquer surpresa será decorrente da performance dos jogadores em campo, que pode se mostrar excepcional, mas não da mudança das regras. Se a torcida grita “juiz ladrão” é porque acredita, embora parcial e passivamente, que a regra foi violada. Que o diga o VAR.


O comentarista não será surpreendido com um jogador pegando a bola com a mão porque está com joanete, ou com um time jogando com quinze jogadores porque o outro time tem profissionais mais preparados e é preciso “igualar as forças”.


Dirão talvez que resumir a fineza do Direito a um exemplo de partida de futebol seja reducionismo ignorante, para não me chamarem de idiota. Certamente a muitos interessa complicar o Direito, como aos intérpretes dos oráculos interessava serem os únicos a entender o que diziam as divindades.


Diferentemente do sortilégio obscuro da leitura da sorte, porém, o Direito não pode ser um campo de aleatoriedades e desejos.


O médico não pode desconsiderar todo o conhecimento que o antecede para receitar fel de urubu como cura do câncer, assim como um engenheiro não pode fazer pouco caso da matemática e das leis da física.


Guardadas as proporções com o fato de que essas duas profissões lidam com a realidade de forma inexorável, também aqueles profissionais do Direito não podem ceder à tentação opiácea de domar a realidade com base em teorias jurídicas, petições estilizadas e decisões pujantes.


É certo que a segurança jurídica começa não no Judiciário, mas no Legislativo, e um país que mude constantemente suas normas ou aprove leis contraditórias ou casuísticas, com a finalidade de favorecer sempre certas pessoas ou categorias ou viabilizar certas práticas socialmente nocivas, é claramente inseguro.


Da mesma forma gera insegurança um Judiciário que viva contrariando as leis, ignorando os contratos, dando interpretações esdrúxulas sobre o ordenamento ou até mesmo criando normas novas.


Qualquer sociedade minimamente estável garante aos indivíduos que a compõem a segurança das relações: contratos serão cumpridos, bandidos e corruptos serão presos e tributos serão razoáveis.


Aquela pessoa que resolve investir em um negócio, comprar sua casa ou ingressar em um trabalho precisa da garantia de que as regras do jogo não vão mudar no meio da partida. Um lugar que seja instável e que não garanta essa segurança para os seus cidadãos impede que as pessoas planejem seu futuro e estimula um comportamento desonesto e imediatista.


Como pensar no amanhã se eu não sei nem como as coisas serão no final da tarde?


Da mesma forma quem ingressa no curso de Direito tem que saber que irá trabalhar com a Constituição e com as leis que existem. Trazendo o exemplo do futebol, terá a oportunidade de brilhar com a bola nos pés, mas, se quiser ser cestinha, tem que ir jogar basquete.


O que se tem visto, contudo, é um estímulo à fantasia da justiça em detrimento da lei, à ideia de que se deve lutar pelo que é certo, sem explicar que o que é certo não é o que você acha que é certo, o que você deseja ou o que te beneficia de qualquer modo. E, mesmo que fosse, se lutar pelo que você acredita te coloca em oposição à lei, você tem que largar a carreira jurídica e tornar-se um político eleito para o Legislativo que cria as leis, mas que também encontra limites de atuação na própria lei.


Isso porque se não existe um estado organizado para ditar as normas e impôr seu cumprimento mediante seu poderio, então vige a lei da selva, a lei do mais forte.


Violar a lei, qualquer que seja o argumento, é solapar o próprio fundamento da existência de qualquer profissão jurídica.


Diferentemente do médico, do engenheiro, do músico, do cozinheiro e de tantas outras profissões, as jurídicas são uma ficção. Se amanhã sobrevier uma nova Constituição dizendo que não existe advogado, delegado ou juiz, bom… não vai existir advogado, delegado ou juiz, e todo o conhecimento que os profissionais tenham sobre as leis não vai adiantar nada se elas forem revogadas.


O juiz só existe porque a Constituição diz que existem juízes, assim como promotores, procuradores, defensores e advogados. 


Quando as leis são violadas, por mais lindo e politicamente correto que seja o motivo, a democracia é corroída e o próprio alicerce da sociedade é abalado. Se não existe segurança, então as leis são sugestões, e não obrigações. Torna-se possível ser malandro sem consequência e qualquer semelhança com a realidade brasileira é mera coincidência.


É maravilhosamente igualitário imaginar que o time que tenha o Messi ou o Michael Jordan tenha que entrar em campo com menos jogadores para equilibrar a partida, ou que o Mike Tyson tenha que entrar no ringue com a mão direita amarrada atrás das costas porque o oponente é mais fraco.


Mas imagine se em uma partida de futebol um dos times tenha que seguir as regras e o outro possa fazer o que quiser: pegar a bola com a mão, dar rasteira, aumentar o número de jogadores… não existem limites.


É isso que acontece quando aportam ao Judiciário petições com pedidos que violam as leis postas porque “é questão de justiça”, e se torna pior quando o Judiciário alberga essas violações.


É a política de fé, ou imaginativa, que nada tem a ver com religião, prenunciada por Michael Oakeshott, na qual a política é vista como um projeto ideológico que aprimora a natureza humana, surgindo propostas universalizastes e ambíguas como “direito à liberdade de viver sem miséria”, que é uma quimera inexequível (OAKESHOTT, 2018)


Justamente porque somos humanos temos que ter a humildade de reconhecer que nenhum de nós tem a solução para os problemas do mundo individualmente. Tentar fazê-lo à revelia de milhões de outras pessoas que serão afetadas não é diferente de qualquer ato de um ditador.


A idade dá uma outra perspectiva à vida, a noção da fragilidade do existir afasta a urgência e a intolerância. São os jovens que antes de amadurecer querem tudo agora e tudo da forma que acham que é certo, porque todo o resto é errado.


Quem se propõe a trabalhar com as leis deve ter a humildade e a ética suficiente para entender que jurou servi-las porque a alternativa é o caos, porque cada vez que o ordenamento jurídico é relativizado para albergar um desejo a democracia, a liberdade e o senso de comunidade cedem um pouco.


E não adianta dizer, ostentando uma boina revolucionária, que a escravidão e a servidão femininas um dia foram legais, porque hoje vivemos em uma democracia em que isso não se compara. Além do que a luta nesse campo, embora jurídica, foi essencialmente política: Gandhi foi advogado antes de tornar-se um líder político, e Antônio Bento foi juiz antes de juntar-se aos caifazes.


A solução do mundo não está no pedido de um advogado, nem na decisão de um juiz, mas na construção conjunta da realidade. A violência é sempre um substitutivo inútil para o diálogo, e o pouco que ela constrói é pago com a dignidade humana. 


A pressa em fazer mudanças de forma pontual, pedidas por um advogado, defensor, procurador ou promotor, e decididas por um juiz, três desembargadores ou onze ministros, é sempre em prejuízo do processo democrático, é sempre em favor da força e em prejuízo do diálogo, do debate, do amadurecimento.


As carreiras jurídicas lidam com as leis postas. Para mudá-las é preciso abandonar o caminho fácil das teses jurídicas e ingressar na arena democrática com todos os seus reveses e armadilhas, ou assumir-se um revolucionário contra o sistema, mas até para isso é preciso ter o mínimo de coerência, que os antigos chamariam de vergonha na cara, e não se beneficiar daquilo que se quer destruir.


O tempo se vinga de tudo o que é feito às pressas, somente aquilo que toma tempo e demanda esforço permanece. Enquanto os castelos de areia do frenesi juvenil não resistem à maré alta, as pirâmides e catedrais erigidas com o esforço, a paciência e o trabalho conjunto de muitos são testemunhas dos séculos.


Lembre-se sempre: a alternativa ao império das leis é a tirania da violência.


REFERÊNCIAS:


(1) - https://www.jota.info/carreira/brasil-tem-mais-de-1-500-cursos-de-direito-mas-so-232-tem-desempenho-satisfatorio-14042020


(2) - https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/brasil-tem-mais-faculdades-de-direito-que-china-eua-e-europa-juntos-saiba-como-se-destacar-no-mercado.ghtml


(3) - https://www.gazetadopovo.com.br/justica/numero-advogados-brasil-oab/



ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. São Paulo. Abril Cutural, 1984.


OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. É Realizações Editora, 2018. 

OLIVEIRA, Eduardo Perez; DOUGLAS, William . Direito à saúde x pandemia. 1a ed. – Rio de Janeiro: Impetus. 2020