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“QUEM NÃO DEVE, NÃO TEME”, OU O BORDÃO DA DITADURA

Eduardo Perez
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“QUEM NÃO DEVE, NÃO TEME”, OU O BORDÃO DA DITADURA

Se alguém nunca usou essa expressão, pelo menos já ouviu falar que “quem não deve, não teme”, referida mui comumente para justificar uma “pré-culpa” de quem se recuse a ter sua privacidade violada. Afinal, se quem não deve, não teme, só quem deve é que tem motivo para temer. Certo?


Se alguém nunca usou essa expressão, pelo menos já ouviu falar que “quem não deve, não teme”, referida mui comumente para justificar uma “pré-culpa” de quem se recuse a ter sua privacidade violada. Afinal, se quem não deve, não teme, só quem deve é que tem motivo para temer.

Sua aplicação é variada: vale tanto para o namorado, ou namorada, que não quer deixar que o amado vasculhe seu celular, quanto para o indivíduo que se negue a ter a vida devassada pelo estado sem o devido processo legal, ou com um devido processo legal que claudique de uma das pernas, que seja caolho, ou seja, viciado no conteúdo e com abuso de forma (ou de autoridade).

E será que quem não deve não precisa temer? Esse artigo irá abordar as presuposições equivocadas envolvendo essa frase e como ela se tornou um clichê para justificar a legitimidade da violação da privacidade alheia.

Quando mais jovem fui adepto desse bordão retórico porque parecia bastante lógico. Afinal, quem não está fazendo nada de errado não precisa ter medo de ser punido, certo?

Essa é uma ideia que se encaixa bem para os fanáticos que, como todos sabem, precisam de uma autoridade na qual se amparar a fim de destilar seu fanatismo e se sentirem autorizados a fiscalizar e punir o próximo.

A falta de experiência dos jovens e sua tendência ao totalitarismo e ao imediatismo os torna alvos perfeitos, e talvez por isso Nelson Rodrigues (1912-1980) exortava-os a que envelhecessem logo:

“Se o homem, de uma maneira geral, tem vocação para a escravidão, o jovem tem uma vocação ainda maior. O jovem, justamente por ser mais agressivo e ter uma potencialidade mais generosa, é muito suscetível ao totalitarismo. A vocação do jovem para o totalitarismo, para a intolerância é enorme. Eu recomendo aos jovens: envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais depressa possível, isto é um azar, uma infelicidade” (RODRIGUES, 2012. P. 105/106)

Daí também porque são eles os recrutados por movimentos totalitários de qualquer matiz ideológica: não sabem nada do mundo, nem sabem que não sabem, mas sabem que quem discorda está no caminho de uma “sociedade mais justa e igualitária” e o único caminho é sempre a opressão e a violência.

Graças a Deus envelheci, e hoje esse bordão “quem não deve, não teme” me parece mais próprio a uma ditadura e aos que bovinamente a apoiam do que a qualquer outro tipo de regime.

Para bem entender essa expressão é preciso ter em mente dois elementos: primeiro, o que é o “dever” e segundo, quem o dita e o impõe.

O erro básico de interpretação é partir do pressuposto de que a palavra “dever” na frase é algo previamente válido e que obriga a todos, logo, quem vulnera essa obrigação universal claramente deve ser punido, e quem não a vulnera não precisa ter medo de se esconder da fiscalização.

Mas o que é esse “dever”? O filósofo Immanuel Kant (1724-1804) pretendeu em sua doutrina apresentar seu imperativo categórico como uma bússola ética universal a todo ser humano, mas isso é muito distante daquilo que efetivamente ocorre na história humana.

Apenas para citarmos alguns exemplos, para o Império Romano, de 64 d.C a 313 d.C, cristãos eram errados e deveriam ser perseguidos. Na Grã-Bretanha do século XIX, ser homossexual era crime, o que levou o escritor Oscar Wilde a ser condenado a dois anos de trabalhos forçados na prisão, em 1895. Segundo o Código Criminal do Império do Brazil, de 1830, quem, livre, ajudava, excitava ou aconselhava escravos a se insurgirem, fornecendo-lhe armas, munições ou outros meios, respondia com penas de prisão e trabalho forçado de oito a vinte anos (art. 115), e se participassem da insurreição seriam condenados à morte (art. 114). Na Alemanha nazista, a Lei para Restauração dos Serviços Civis Profissionais, de 7 de abril de 1933, excluía judeus e “pessoas politicamente não confiáveis” da política e do funcionalismo público, e todos sabem o que aconteceu a partir daí até os campos de concentração e a morte de milhões de judeus, sem contar os ciganos, homossexuais, cristãos e todos os que eram “ideologicamente repreensíveis”. Em 1951, na União Soviética, Vera Golubeva foi condenada e enviada para um Gulag na Sibéria apenas por contar uma piada (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40982426).

Existem países onde até hoje é proibido ser cristão, nos quais homossexuais precisam se esconder para não serem mortos, onde mulheres são punidas apenas porque querem ir para a escola. Países nos quais a pessoa não pode dizer o que pensa, não pode discordar do regime e/ou da religião, professar sua própria fé, sob pena de prisão, castigos corporais ou morte.

Esses são apenas alguns exemplos do que foi entendido, ou ainda é, como “dever” a partir dos cânones estatais ou imposições do grupo. Logo, é claramente equivocada a ideia de que o “dever” por si só implica algo correto a que todos estão submetidos. Nas situações apontadas, e segundo a lógica do bordão, quem “deveria”? Quem é judeu, cristão, homossexual, submetido à escravidão, quem os ajuda.

E não se diga que essas situações só ocorrem em regimes de exceção. Rosa Parks (1913-2005) vivia em um EUA democrático quando foi presa em 1955 ao se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um branco. Absurdos continuam a existir ainda hoje e regimes que eram democráticos deixaram de sê-lo, que o diga a nossa vizinha Venezuela.

A estabilidade de um regime não é destruída de um dia para o outro, ela é solapada lentamente, até que sobrevém o golpe e a institucionalização das práticas persecutórias. Não cabe a este pequeno artigo discutir a queda de regimes e a natureza de revoluções, mas apenas apontar como é equivocada a presunção de insindicabilidade e de legitimidade de um “dever”.

Já vimos como o termo “dever”, da frase “quem não deve, não teme”, pode ser utilizado para justificar qualquer tipo de conduta, porque ele é vazio de significado e a priori considera que a obrigação/dever é sempre legítima e que o acusado é quem deve provar sua inocência, o que veremos mais adiante. Agora é preciso analisar o segundo ponto, quem define o que é esse dever.

O fetichismo positivista pós Iluminismo não afastou o igual fetiche da sacralidade da autoridade, mas ambos se amalgamaram na mente do vulgo de forma a tornar também a lei “sagrada”, em vez de dessacralizar a autoridade da qual ela emana.

Assim, repete-se a expressão “é a lei” como se a anunciar a gravidade ou a velocidade do som, algum fato inexorável fruto da formação do universo, e não uma ficção humana, sem aqui ingressar na questão do jusnaturalismo e do juspositivismo.

A norma não surge por si só, como se fosse algo como as leis da física, mas é gestada dentro de um sistema, democrático ou não, e alguém em posição de comando a elabora. Se é um regime legítimo, no qual todos são iguais em direitos e deveres, no qual há representatividade, e existe um sistema de controle eficaz e válido, as normas se submetem a todo um processo e a esse escrutínio, sendo fruto da vontade da nação, se possível validada pelo tempo. De outra forma, as normas serão fruto do arbítrio de quem está no poder, que as aplicará ou não ao seu alvedrio, poderá mudá-las, suprimi-las e “ressuscitá-las” conforme sua conveniência.

É nas situações nas quais se discute a eficiência de um sistema de controle que se utiliza a expressão latina “quis custodiet ipsos custodes?”, traduzida por “quem vigiará os vigilantes?”, utilizada pelo poeta romano Juvenal, falecido no século II d.C., em sua obra As Sátiras.

Originalmente a expressão estava inserida no contexto da impossibilidade de impor um “comportamento moral” às mulheres em razão do conluio delas com seus vigias, mas acabou sendo usada historicamente para expressar o risco de tiranias e ditaduras diante de pessoas ou grupos que possuem poderes sem limites ou fiscalização. Ou ainda, a importância de se não confiar cegamente em nenhuma autoridade, que deve ser sempre vigiada.

É pertinente que se questione o risco que representam aquelas autoridades que não possuem qualquer tipo de restrição, que são impermeáveis à lei que elas mesmas criam e interpretam, que não se submetem a nenhum outro tribunal ou poder que não a própria consciência, melhor aqui definida como paixão ou apetite, já que consciência tais autoridades não têm.

Essa mesma situação surge n´A República, de Platão, quando Sócrates assevera que os guardiões da cidade não podem ser dados à embriaguez, no que Glauco, seu interlocutor, responde, concordando: “Seria ridículo, replicou, um guarda necessitar de guarda”. (PLATÃO, 2000. p. 163, 403, e), demonstrando o filósofo aqui um otimismo inocente sobre a natureza de quem está em situação de poder.

John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, utiliza a expressão “quis custodiet ipsos custodes” ao mencionar como uma assembleia política se exime de sua responsabilidade de vigiar diluindo a culpa no coletivo até que os efeitos desastrosos dessa omissão se tornem visíveis como catástrofes nacionais. Diz Mill que “a maior parte da assembleia pode manter as mãos limpas, mas não pode manter a mente vigilante ou o discernimento de seus julgamentos em assuntos sobre os quais nada sabem” (MILL, 2004).

De fato, seja pela ausência de guardiões, seja por sua existência formal no sistema, mas materialmente ineficaz por conluio, omissão ou medo, é plenamente possível que indivíduos ou grupos se sobressaiam em determinado regime e passem a impor leis (ou interpretações) arbitrárias e opressivas, a perseguir determinadas religiões, ideologias e a reprimir pela censura, violenta ou não, toda divergência de pensamento, e com isso a invadir a privacidade dos indivíduos.

Como poderes ilimitados pode ocorrer o que se deu, por exemplo, na União Soviética. Para Lenin, “a única tarefa do judiciário é prover, principiologicamente e politicamente correta (e não meramente estritamente judicial)… a essência e justificação do terror… A corte não é a eliminação do terror…. mas a sua substituição e legitimação em princípio” (PIPES, 1995. p. 480).

Observe-se como funcionava o Tribunal Popular, instituído por Vladimir Lenin em 1918:

Os bolcheviques deram forma institucional aos julgamentos da turba através dos novos Tribunais Populares, onde a ‘justiça revolucionária’ foi sumariamente administrada em todos os casos criminais. O antigo sistema de justiça criminal, com suas regras formais de direito, foi abolido como uma relíquia da “ordem burguesa” ... As sessões dos Tribunais Populares eram pouco mais que julgamentos da turba formalizados. Não havia nenhum conjunto de procedimentos legais ou regras de evidência, que em qualquer caso dificilmente eram apresentados. As condenações eram geralmente garantidas com base em denúncias, muitas vezes decorrentes de vendetas privadas, e sentenças elaboradas para agradar ao humor da multidão, que expressavam livremente suas opiniões da galeria pública …
Os julgamentos da Corte Popular eram realizados de acordo com o status social do acusado e de suas vítimas. Em um Tribunal Popular, os jurados criaram o hábito de inspecionar as mãos do réu e, se fossem limpas e macias, considerá-lo culpado. Comerciantes especuladores eram severamente punidos e às vezes até sentenciados à morte, enquanto que os ladrões - e às vezes até assassinos - dos ricos geralmente recebiam apenas uma sentença muito leve, ou mesmo absolvidos, se alegassem que a pobreza era a causa do crime. O saque dos “saqueadores” havia sido legalizado e, no processo, a lei como tal foi abolida: havia apenas ilegalidade. (FIGES, 1996. p. 653/654)

O primeiro Código Penal soviético, de 1º de junho de 1922, tinha por objetivo não proteger a população das arbitrariedades do estado no plano da perseguição política ou aplicar sanções justas, mas apenas de justificar o terror.

O aludido código trazia previsões abertas, como, em seu artigo 58, ao considerar contrarrevolucionária toda atividade que constituísse participação na burguesia internacional, com punição de três anos de reclusão até o banimento perpétuo. Em razão de seu tipo amplo e sem limites, incontáveis inocentes foram condenados por esse “crime”, dentre eles os que tiveram a ousadia de criar um comitê para lutar contra a fome severa de 1921/1922 (ZIMMERMAN, 2010. p. 394).

Sobre o nazismo, como nos ensina Hoefer, a legislação penal de Hitler foi um retrocesso àquela da República de Weimar, podendo ser sintetizada da seguinte forma (HOEFER, 1945 p. 386):

I. Abolição de todas as garantias constitucionais para a liberdade de cidadãos inocentes.
II. Legislação por decreto do governo.
III Criação de novas infrações penais até agora desconhecidas, a fim de promover a perseguição política, racial e religiosa.
IV. Aumento na severidade da punição; aumento do uso da pena de morte.
V. Criação de novas punições.
VI. Dualismo de punição legal e extrajudicial

Durante o regime nazista, leis infraconstitucionais ignoravam a proibição constitucional da punição arbitrária sem previsão legal ou da irretroatividade. Essa proibição foi revogada por decreto em 28 de junho de 1935, admitindo-se expressamente a punição ex post facto e banindo a necessidade de lei prévia para caracterização de crime, admitindo que alguém fosse penalizado por atos ofensivos ao “sentimento do povo” mesmo que nenhuma lei tenha sido de fato violada (HOEFER, 1945, p. 386).

Para os sistemas soviético e nazista, portanto, “deve” quem pensa diferente, quem ofende à revolução ou ao “sentimento do povo”, inclusive retroativamente ao surgimento dessas normas. E tudo o que é certo ou errado poderia mudar várias vezes ao longo do dia, sem estabilidade.

Parece bastante evidente que quem está no poder e não possui qualquer tipo de sindicabilidade ou limite faz o que quer e, mais grave, impõe a todos os demais o que quiser. É ele quem diz o que é “dever” e quais as consequências por descumpri-lo. É errado ser judeu, homossexual, cristão. Se você é, você deve e precisa temer, se você não é, não deve e não tem o que temer. De todo jeito, o estado irá investigá-lo, virá-lo do avesso, invadir sua privacidade e você vai deixar porque, claro, você não deve.

“Ah”, pode dizer alguém ainda não convencido, “essas aí são situações de exceção, não acontecem numa democracia, além do que, em alguns casos a pessoa realmente deve”.

Trata-se do mesmo erro apontado anteriormente do fetichismo legal, a crença de que a democracia é algo sagrado e inviolável por si só, e não uma convenção bastante frágil que depende do acordo da maioria das pessoas e de sistemas de controle e punição eficazes. O fato de dizer que se está sob um regime democrático não o caracteriza como tal, da mesma forma que chamar um pinheiro de macieira não o fará dar maçãs.

É o que nos recorda outro adágio muito comum que diz que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, na verdade uma síntese de um trecho do discurso proferido pelo norte-americano John Philpot Curran, em 1790:

“É destino comum do indolente ver seus direitos se tornarem presa do que é ativo. A condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna; condição que se ele quebrar, a servidão será ao mesmo tempo a consequência de seu crime e a punição de sua culpa”

Tal qual Mill que também advertia sobre os riscos de uma assembleia indolente, Curran apontava como a liberdade deve ser sempre vigiada de perto, pois a falta de zelo permitirá àqueles que são predadores políticos a tomada do poder e a supressão de direitos.

Assim, a palavra democracia não carrega consigo o mesmo poder que as palavras sagradas das religiões, ditas apenas em rituais por seus sacerdotes, servindo apenas para definir um sistema de governo que, embora seja o menos pior, é também o mais frágil deles e sucumbe diante de qualquer caudilho, qualquer ditador carismático, qualquer populismo.

Logo, concluímos que os casos mencionados não são situação de exceção, e quanto a dizer que em algumas situações “a pessoa realmente deve”, ingressa-se num círculo vicioso de definir o que é dever. Para alguns é plenamente válido perseguir alguém pela religião, ideologia ou sexualidade.

Mas, de fato, algumas vezes a pessoa pratica condutas realmente criminosas, ou seja, ela “deve”, entendido esse dever inserido em um ordenamento jurídico legítimo, e a violação dessa privacidade deve se submeter a um mecanismo legal que existe não para proteger o criminoso, mas para evitar que se puna o inocente e, num contexto mais amplo, a arbitrariedade de quem está em situação de comando.

São princípios experimentados pelo tempo, alguns remontando há séculos de história, já estudados, debatidos e compreendidos de tal modo que hoje não se pode falar em um sistema legal válido sem que sua presença seja respeitada.

Um deles é justamente o princípio da presunção de inocência, cuja origem retrocede, com a devida compreensão, até o século VI d.C, com o Digesto ou Pandectas de Justiniano, que previa que incumbia a quem alegava provar o alegado, e não a quem o negava (22.3.2 - Ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat), e que hoje consta de forma expressa no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 11
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Embora a maioria das pessoas, se não todas, há de concordar em tese que quem acusa é que deve provar, na prática, quando seus interesses estão em jogo, ainda que meramente ideológicos ou passionais, como ódio, inveja, ressentimento, estão dispostas a relativizar ou até mesmo desconsiderar absolutamente essa presunção de inocência.

É exatamente isso o que acontece quando alguém diz “quem não deve, não teme”. Esse bordão parte da ideia de que todos somos culpados e devemos nos submeter ao escrutínio da autoridade em virtude de um dever imposto por quem está em posição de poder.

A expressão “quem não deve, não teme” equivale à “prove que você é inocente”, o que inverte e deita por terra a construção de séculos da presunção de inocência e o dever de quem acusa provar a acusação.

Existem situações nas quais o direito à privacidade pode ser relativizado, mas isso só acontece quando há indícios concretos de práticas ilícitas, civis ou criminais, que autorizam, por exemplo, a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, a busca e apreensão em residência e outras medidas, todas previstas em uma legislação válida e legítima, e realizadas apenas mediante decisão judicial claramente fundamentada que aponte os indícios da prática criminosa que se pretende investigar e que se submete ao escrutínio e análise de validade posterior por terceiros e pelo alvo de tal decisão, ensejando inclusive a responsabilidade dos envolvidos.

Não se admite a violação da privacidade com base em decisões judiciais sem fundamento, genéricas, que não apontem explícita e minuciosamente os elementos que justificam a violação do direito à privacidade do indivíduo à luz da legislação, ou pior, apenas com base na arbitrariedade e no uso da violência estatal.

Embora alguns deveres sejam válidos, porque decorrentes de um sistema legal legítimo, isso nem sempre acontece, de forma que tais “deveres” podem ser iníquos, injustos ou mesmo ilegais, praticados com abuso de autoridade. Logo, se às vezes alguns deveres são válidos, e é possível a relativização da privacidade, e algumas vezes não, mesmo quando as leis o permitem, e lembremos da legislação que autorizava a escravidão e os sistemas soviético e nazista, o bordão “quem não deve, não teme” não se sustenta.

A ideia por trás do bordão “quem não deve, não teme” é a de um estado todo poderoso, totalitário, com autoridade para violar a privacidade do cidadão quando bem lhe convier, ou ainda, sem permitir qualquer direito à privacidade ou intimidade.

A distopia de 1984, de George Orwell, trata exatamente disso: indivíduos sem privacidade e sempre sujeitos à punição, são indivíduos incapazes de reagir ao controle estatal, porque proibidos de ter uma vida própria ou de conversarem entre si. Todo estado totalitário faz questão disso, porque é a melhor forma de controle: todos têm medo do estado e uns dos outros, porque nunca sabem quem irá denunciar quem, ou quais são os deveres de cada um, que a todo momento podem mudar.

Se você é adepto desse bordão, repense sua postura. Se não por uma atitude ética de fazer o que é certo, pelo menos por um motivo egoísta: se hoje você não “deve”, amanha você irá dever.

O estado é uma ficção criada para regular a vida em sociedade e permitir que o indivíduo floresça em suas potencialidades, não um fim em si. Direitos individuais foram conquistados a duras penas em uma história prenhe de regimes absolutistas, de ditadores e de líderes com tendências totalitárias.

Como advertiu Rousseau, em sua obra Do Contrato Social:

Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. (ROUSSEAU, p. 7)


Quem renuncia à própria liberdade renuncia à condição humana, e essa mesma liberdade é incompatível com uma autoridade absoluta, inatingível e insindicável. Ou somos todos iguais, ou uns são escravos e outros não.


Referências:

FIGES, Orlando. A People’s Tragedy: A History of the Russian Revolution. London: Pimlico, 1996.

HOEFER, Frederick Hoefer, e Nazi Penal System--I, 35 J. Crim. L. & Criminology, 385 (1944-1945)

MILL, John Stuart. The Project Gutenberg EBook of Considerations on Representative Government. 2004.

PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. EDUFPA. 3a ed. 2000.

RODRIGUES, Nelson. Org. Sônia Rodrigues. Ed. Autoria. 2012.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. Rolando Roque da Silva. Ed. eletrônica Ed. Ridendo Castigat Mores.

ZIMMERMANN, Augusto. Marxist jurisprudence in the former soviet union: a critical appraisal. Revista Interdisciplinar de Direito, [S.l.], v. 7, n. 01, p. 383-397, dez. 2010. ISSN 2447-4290. Disponível em: . Acesso em: 26 maio 2019.