PL DE ABUSO DE AUTORIDADE: NÃO É SOBRE APANHAR, PRESIDENTE, MAS SOBRE FAZER A COISA CERTA
Qualquer ação não deve ter por objetivo agradar alguém, mas fazer a coisa certa.
Circula a notícia de que o Presidente da República, Jair Bolsonaro, teria dito a seguinte frase:
“Vetando ou sancionando, ou vetando parcialmente, eu vou levar pancada, não tem como, vou apanhar de qualquer maneira.”
É impossível extrair a intenção do chefe do Executivo nacional ao proferir essas palavras, mas é possível fazer uma breve meditação a respeito.
Em tese, o agente afirma que sua ação será criticada de qualquer forma, isso porque agradará alguns e desagradará outros.
No caso do Projeto de Lei sobre o suposto abuso de autoridade, a sanção presidencial agradará com certeza os deputados que votaram a favor e mais uma série de pessoas, inclusive e especialmente os criminosos, e desagradará boa parte da população, nela incluída os (poucos) deputados que votaram contra, os juízes, policiais e promotores de justiça. Se vetar, o resultado será o contrário: desagradará os primeiros e agradará os segundos.
Esse é um tipo de pensamento válido? Temos que nos preocupar sobre a opinião alheia quando agimos?
Para influentes pensadores a resposta é negativa.
Aristóteles nos traz o conceito de eudaimonia, que é, grosso modo, o florescimento humano ou a felicidade plena.
Para ele, a felicidade é o fim último da ação humana, mas somente a virtude pode conduzir a ela. Quem não é virtuoso não pode chegar à felicidade. Dentre essas virtudes, claro, está a Justiça.
Os estóicos, escola posterior de filosofia ainda na Grécia antiga, inspirados pela tese aristotélica, dirão que a virtude é o fim em si mesmo e que a ação deve ser feita com esse pensamento.
Seguidor dessa filosofia, o imperador romano Marco Aurélio escreveu:
"Quando tiveres feito o certo e outro se beneficiar de tua ação, por que, como um tolo, busca uma terceira coisa além disso, como parecer aos outros que fizeste o bem ou que possas no futuro receber algo em troca?"
Em suma, diz o imperador que a virtude é o fim em si mesmo, logo, fazer o bem e saber que isso beneficiou alguém é o que basta, não devendo buscar a glória por vaidade (parecer aos outros que fizeste o bem) ou qualquer vantagem disso (receber algo em troca).
Immanuel Kant, por intermédio de seu imperativo categórico, é ainda mais assertivo a respeito: você deve fazer a coisa certa porque é a coisa certa a ser feita. Simples assim. Não porque isso vai beneficiar ou prejudicar alguém, ou porque vai agradar ou desagradar, mas porque o certo é o certo.
E como saber o que é certo? Kant nesse caso traz algumas balizas, como o dever de agir como se a máxima de sua ação pudesse ser transformada em uma lei universal, ou seja, pensar se o que você está fazendo é cabível em qualquer situação, e não só nesse ou naquele caso.
Além disso, a humanidade deve ser considerada sempre como um fim em si mesmo, e nunca um meio para outro fim. Essa é a máxima da dignidade humana que consta no art. 1º, III da Constituição Federal e todo mundo cita mais por costume do que por compreensão.
Para fazer a coisa certa, portanto, eu não posso considerar somente os meus interesses, da minha família, de certo grupo, partido ou raça, mas o interesse de todos de uma forma universal.
Considerando nossa civilização judaico-cristã e a fé que nos move, não é demais recordar que a Bíblia diz as mesmas coisas, como, por exemplo, “Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo.” (Filipenses 2:3), ou “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Coríntios 10:31 RA).
Ora, se Deus é a fonte das virtudes e o avesso dos vícios, também é a origem da Justiça. Logo, agir para a Sua glória é agir em obediência a essas virtudes.
Trazendo para um campo mais prático, como magistrado é oportuno dizer: “Bem-vindo ao nosso mundo, Presidente”.
O mundo dos juízes é aquele em que, sim, vamos apanhar de qualquer jeito. Platão já afirmava que o juiz em sua sentença deve proceder conforme a lei, sem favorecer quem lhe agrada.
Natural, afinal a ideia de Justiça só se conjuga com a imparcialidade, e a imparcialidade exige muitas coisas. Além de não poder o juiz se deixar influenciar por simpatias ou antipatias, também não poderá julgar tomado pelo medo dos efeitos de sua decisão. Medo de desagradar ao público, medo de perder a amizade de alguém ou até mesmo o medo de ser ferido ou morto ou de ter as pessoas que ama atingidas.
Já dizia o sábio Rui Barbosa, “o bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”. Da mesma forma, nos alertou o não menos venerável Eduardo Couture que o dia em que os juízes tivessem medo, nenhum cidadão mais dormiria em paz, pois o direito teria perdido sentido e somente a força e a tirania vigorariam.
Um juiz, pela natureza da função, irá desagradar pelo menos uma das duas partes do processo. Pelo menos metade do seu “público” já não irá gostar dele. Mas pode ser até 100%, ou mais, pois quem dele se desagrada quer que outros também passem a detestar o juiz e o difama.
O bom magistrado não deve se preocupar ao proferir sua sentença se irá “apanhar” de um lado ou de outro, a quem irá desagradar, e sim decidir em conformidade com a Justiça.
Essa máxima deveria valer para todo o serviço público, até pelos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da supremacia do interesse público.
Já quase ninguém se escandaliza se o jornal informa que a bancada tal influenciou uma lei ou impediu que algo fosse votado. Mas certamente haveriam gritos se a notícia fosse de que um magistrado resolveu julgar improcedente uma ação por lobby de algum grupo, ou absolver alguém claramente culpado porque politicamente é a melhor coisa a ser feita.
O escândalo, porém, deveria ocorrer tanto em um caso quanto em outro. O interesse público é universal, de todos, e não é diferente no Legislativo do que é no Judiciário.
A nenhum agente público, inclusive os políticos, como são os magistrados, deputados, presidente, governadores e outros, deveria ser possível fazer algo “que não a coisa certa a ser feita”.
Desagradar alguém não deveria ser uma preocupação de quem lida com o interesse do povo.
Assim como o bom juiz não deve temer os poderosos, nem o tribunal da mídia, pautando-se pela lei e por sua consciência, também o Executivo e o Legislativo assim deveriam agir.
Com certeza nós juízes somos muito ofendidos por quem se desagrada com nossas decisões. Esperar justiça do injusto seria talvez muito. Até por isso existem garantias constitucionais, como a inamovibilidade e a vitaliciedade, que impedem a interferência do poder político e/ou econômico na atuação do magistrado.
E são cláusulas pétreas da Constituição, ou seja, imutáveis, porque asseguram que o juiz terá condições de proferir um julgamento imparcial, sem medo de retaliações (embora existam). São, portanto, garantias que interessam ao povo para que sempre encontrem no Judiciário um magistrado capaz de reparar ou impedir uma violação ao seu direito.
Essas garantias, porém, estão sendo cada dia mais solapadas pela política nacional, e os juízes já não possuem mais as mesmas seguranças. A promessa que esse aberrante Projeto de Lei de suposto abuso de autoridade entrega é de uma Magistratura, um Ministério Público e uma Polícia ainda mais atacados e acuados.
Resistiremos, sim, sem dúvida, mas sem um Judiciário independente e uma polícia estruturada, hábil a agir em defesa do cidadão, não haverá quem possa garantir os direitos mais básicos.
Tanto é fato que qualquer ditadura começa por tomar o Judiciário e, em seguida, calar a imprensa.
Em conclusão, no caso do PL de suposto abuso de autoridade, em tese, o Presidente Bolsonaro não deveria temer quem irá criticá-lo, e sim se preocupar em fazer a coisa certa, que leve em consideração o interesse universal e trate a população como um fim em si mesmo, e não como um meio para interesses de pessoas ou grupos.
E se me perguntarem, e ninguém ainda me perguntou, me parece que calar a Justiça nunca é a coisa certa, aqui, na China ou em Marte.
REFERÊNCIAS:
(1) O Antagonista. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/bolsonaro-sobre-abuso-de-autoridade-vou-apanhar-de-qualquer-maneira/. Acessado em 17.08.2019.
(2) (ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo. Nova Cultural: 1996 p. 200)
(3) MARCUS AURELIUS. Meditation. Project Gutenberg. 2001
(4) KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Rio de Janeiro: Ediouro.
(5) Bíblia Sagrada
(6) PLATÃO. Apologia de Sócrates. Virtual Books Online M&M Editores. 2000/2003.
(7) BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 26, t. 4, 1899. p. 191. Rio de Janeiro, DF
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.