PARANÓIA, POLITICAMENTE CORRETO E LIBERDADE: A FUGA DO GULAG CULTURAL
Uma prisão sem grades da qual não se pode escapar. Esse é o condicionamento mental e o patrulhamento ideológico que limita o acesso a uma carreira profissional, aos estudos e até ao uso das redes sociais. A padronização cultural pode ser um gulag?
Prefácio: Esse texto foi escrito em janeiro de 2018 e publicado apenas agora,em novembro de 2020,razão pela qual algumas referências podem ser consideradas datadas. De todo modo,de lá para cá, apesar do pouco tempo, confirmou-se uma escancarada guerra informacional e narrativa em contraposição à verdade, com grupos lutando para prevalecer sua versão sem compromisso com a realidade. Houve um aumento da alienação e uma escalada do extremismo (e da intolerância e da violência) em suas várias facetas, apesar de atualmente reduzidas a dois grandes grupos. O futuro se apresenta sem indícios de uma melhora coletiva. A única esperança que resta é a individual, que cada um desenvolva uma consciência do mundo sem a interferência de líderes, gurus ou cartilhas. Que Deus olhe por nós.
"Idéias são mais poderosas que armas. Se nós não deixamos nossos inimigos terem armas, por que deixaríamos que tivessem ideias?"
Joseph Stalin
(Quotations for Public Speakers : A Historical, Literary, and Political Anthology (2001) by Robert G. Torricelli, p. 121)
Em meados da década de 1990, conheci um RPG chamado Paranóia. O jogo se passa em uma cidade num futuro distópico, chamada de Complexo Alpha, controlada por uma inteligência artificial, O Computador, com uma sociedade dividida em castas identificadas por cores das vestimentas.
Uma mistura de 1984 (George Orwell) e Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), o Computador é uma inteligência artificial criada para proteger os humanos e sua sociedade perfeita e, embora cheio de boas intenções, enlouqueceu e passou a ver ameaças por todos os lados.
A programação do Computador é manter os cidadãos felizes a qualquer custo, ainda que o preço seja suas próprias vidas. Para isso precisa protegê-los de todo tipo de inimigo. O problema é que o Computador não sabe exatamente qual é esse inimigo, ou até mesmo se ele é real ou imaginário.
Considerando esse cenário, para subir na estrutura social é preciso demonstrar devoção ao Computador e obediência cega às suas ordens. Nesse caso, nada melhor do que denunciar “traidores”, isto é, aqueles que contrariam ou somente criticam as aleatórias ordens do governante digital, e até aqueles que não sejam mesmo traidores. Por isso o jogo estimula, a título de humor, a mentira, a trapaça e a traição entre os jogadores, que precisam lidar constantemente com ordens bizarras e muitas vezes contraditórias do Computador, com a missão de interpretá-las e cumpri-las.
Não cumprir uma ordem é morte. Cumprir errado é morte. E mesmo cumpri-la da forma correta pode significar a morte. Quase tudo pode ser considerado traição: não estar feliz, estar sujo, possuir objetos pessoais não autorizados, estar com o cadarço desamarrado, enfim, a lista é enorme.
Os cidadãos são controlados por cores, da mais básica, infravermelho, até a mais alta, ultravioleta. Subir na estrutura social criada pelo computador significa uma melhora na qualidade de vida, com mais direitos e menos deveres, menos risco de morte e menor chance de punição.
No Complexo Alpha, a vida é descartável, porque o importante é a diretriz d’O Computador: todos os cidadãos seguros e felizes.
Com isso, os habitantes vivem em constante paranóia, que dá nome ao jogo, obrigados a expressar uma felicidade perene e a repetir bordões como “O Computador é seu amigo! Confie no Computador”. (PARANOIA, 2014)
A proposta desse RPG é um jogo de humor em partidas rápidas, colocando os jogadores em situações embaraçosas e difíceis.
Talvez seus criadores, que o lançaram, veja só, em 1984, não sabiam que estavam antevendo o século XXI.
Foi no início do século XXI que o politicamente correto, ou PC, cuja semente foi lançada em meados do século XX, mostrou sua verdadeira força para além dos círculos “progressistas”, com suas raízes já infiltradas em todas as estruturas da sociedade organizada, especialmente aparelhando o estado, a mídia e os meios de cultura.
O PC, embora se anuncie como um instrumento de liberdade, não passa de um sistema criado para tornar cada indivíduo censor e censurado ao mesmo tempo, como em Paranoia. Embora a ideia inicial se proclame benéfica, só fez confirmar a frase de que a estrada para o inferno é prenhe de boas intenções, originada, diga-se de passagem, em Virgílio (“facilis descensus Averno”), mas melhor formada em São Bernardo de Claraval, em 1150, de que o inferno é cheio de boas intenções e desejos, e, homessa, até usada por Karl Marx.
Curiosamente, embora se possa falar em certa origem no século XVIII, a força efetiva do politicamente correto surgiu com o patrulhamento ideológico do nazismo, para quem somente os arianos teriam “espaço de fala”, como hoje em dia afirmam que somente alguns indivíduos “empoderados” têm permissão de falar, o resto pode apenas ouvir.
Outra ideologia totalitária e opressora adotou essa forma de censura orgânica: os movimentos marxistas-leninistas, que a utilizavam para medir o nível de “corretude” política para com os dogmas comunistas/socialistas.
Angelo Codevilla, professor emérito de Relações Internacional da Universidade de Boston (https://bit.ly/2C8ohQG), em um texto de alta qualidade a respeito do tema, The Rise of Political Correctness (“A Ascensão do Politicamente Correto”, em tradução livre) (CODEVILLA, 2016), trata acerca do início do politicamente correto e seus perigos.
O artigo inicia com uma piada simulando um diálogo entre dois ativistas: “Camarada, sua afirmação é faticamente incorreta”, no que o outro responde: “Sim, ela é, mas é politicamente correta”.
Correto o professor Codevilla ao apontar o óbvio: de que os autointitulados “progressistas” estão em constante guerra contra as leis da natureza e os limites do universo, no desiderato de criar “uma nova realidade humana”, da qual se sentem não só arautos, como a própria personificação, o que explica uma sorte absurda de aberrações somente possíveis de existir em sociedades prósperas, nas quais os problemas reais são substituídos por quimeras.
Embora o texto analise a realidade dos progressistas norte-americanos em contraposição aos europeus, é plenamente aplicável nesta Terra de Santa Cruz, cujo modus operandi do politicamente correto equipara-se, se não for uma cópia tupiniquim, daquele dos Estados Unidos.
A União Soviética pretendeu a imposição de sua ideologia pelo medo e pela força, sem muito sucesso, como o tempo mostrou. De fato, seu sistema se erguia sobre a perseguição generalizada e a premiação pontual daqueles que entregavam os “inimigos do proletariado” às autoridades, favorecendo poucos e prejudicando muitos.
O regime soviético exigia que o povo negasse a realidade. Com isso, gerou uma população que não acreditava na classe dominante, já que dela só via mentiras e fraudes, o que se tornou o estigma do comunismo. Falhou, portanto, ao tentar imprimir a sua ideologia de fora para dentro do cidadão.
Foi Antonio Gramsci (1891 - 1937), preso durante o regime fascista italiano, que percebeu a relevância da chamada “hegemonia cultural”, a partir de uma leitura de Nicolau Maquiavel (1469 - 1527): era muito mais fácil subjugar uma nação mudando sua forma de pensar do que mediante a opressão, como fazia a experiência soviética.
Embora acreditando na máxima marxista de que não existe natureza humana fixa, apenas a soma das experiências históricas e sociais, Gramsci discordava da ideia de que somente os fatores econômicos eram essenciais e tudo o mais era superestrutural. Era preciso considerar outros elementos, alterando a cultura e a moral da sociedade a partir de um grupo seminal capaz de estipular tais parâmetros.
Tendo vivido o fascismo de Mussolini, e estando na cadeia fisicamente protegido dos próprios conflitos intestinos do comunismo e sua constante onda de perseguições, Gramsci teve oportunidade de, ao desenvolver seu pensamento, apontar a relevância da introdução da ideologia criada nas instituições já existentes.
Foi o caso da aproximação do ditador italiano, Benito Mussolini, da Igreja Católica, com o Tratado de Latrão. Caso a religião fosse perseguida, seus inúmeros adeptos seriam constante preocupação do ditador para a manutenção do regime. Ao lançar as bases da diplomacia e da aproximação Estado-Igreja, tornou a ideologia fascista parâmetro de bom cidadão.
Assim, a usual atitude socialista de desprezar, e até mesmo atacar, o cristianismo, seria um obstáculo à almejada hegemonia cultural, criando, pelo contrário, uma força de resistência pela tentativa de usurpação e dominação da livre expressão espiritual do indivíduo, o que se vê também na arte, no pensamento e na política.
E é nesse ponto que o politicamente correto, acreditando inocentemente seguir as ideias gramcistas, em verdade pratica o contrário do proposto.
Gramsci, grosso modo, propôs a hegemonia cultural e a manipulação da sociedade pela implantação das ideias e dos pensamentos a partir do mencionado grupo seminal, obviamente de viés socialista/progressista. Para isso, seria essencial que essas ideias fossem incutidas dentro das instituições e assumidas pelo status quo como suas.
Em vez de conflitar com a religião, com a academia ou a mídia, seria essencial moldá-las para que passassem não só a aceitar, mas a difundir a agenda progressista, mesmo que significasse negar ou perverter a realidade.
Esse controle deveria ser tal que somente aqueles que se valessem dessa cartilha e do jargão que ela pregava seriam aceitos para participar da sociedade e teriam espaço profissional destacado.
E isso funcionou efetivamente. Pelo menos durante um tempo.
Vimos, e vemos, a forma como várias personalidades das artes, da mídia em geral, do mundo acadêmico e de diversos setores proeminentes da sociedade possuem vínculo com a chamada “agenda progressista”, ou, em outras palavras, do “ideal socialista”, em que pese esses luminares extraírem o melhor do capitalismo.
Nesse sentido, a internet facilitou sobremaneira o acesso a tais dados ao quebrar a hegemonia informacional da grande mídia, ao mesmo tempo em que serviu de atração irresistível ao ego fragilizado desses personagens, que não resistiram a falar por si, em vez de seguir o roteiro habilmente preparado por seus tutores, explodindo em incoerência e discurso dogmático, quando não violento.
A classe dominante é, em que pese a divulgação deles mesmos em sentido inverso, a que repercute o ideal progressista. Se o argumento contrário a essa assertiva é a afirmação de que o povo continua alijado do poder, basta apontar a realidade de como o povo também foi submetido a um cárcere físico, moral e intelectual nos regimes soviético, cubano, vietnamita, cambojano, chinês e venezuelano, para citar alguns, embora haja uma miríade de exemplos.
O controle da mídia e dos meios de informação, bem como das instituições escolares e acadêmicas e da esfera política, é evidente diante da imposição constante de ideais muitas vezes frontalmente contrários à realidade e ao senso comum do povo, o mesmo povo que os seguidores da cartilha adotada dizem defender, de boa-fé ou não.
A alteração, supressão ou criação de fatos históricos, a tentativa de revisionismo de dados, a recuperação de bandeiras superadas e a criação de problemas sociais inexistentes colocam a sociedade em uma bolha apartada do real, tornando o cidadão presa frágil de toda sorte de esquema e violência.
A perda do controle informacional com a internet foi rapidamente superada pela classe dominante com a criação das redes sociais, capazes de arregimentar os cidadãos em grupos segmentados, com algoritmos próprios para mantê-los confortáveis em bolhas de interesse, e, mesmo quando não suficientes as barras dessa prisão invisível, os gestores dessas redes sem pudor passam a banir pessoas, páginas e grupos contrários à ideologia (lucrativa) que professam, demonstrando uma articulação, se não profissional, ao menos ideológica, no sentido de uma hegemonia de pensamento.
É o mesmo banimento que se via na clássica obra de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, quando o indivíduo se propunha a questionar a sociedade perfeita, em realidade um mundo distópico no qual o ser humano era uma peça e somente os líderes tinham liberdade de pensar e agir fora do roteiro pré-programado.
Independentemente da corrente de pensamento, à exceção do paradoxo da tolerância de Popper, a censura é, se não o maior, um dos maiores pecados de uma democracia. Essa perseguição ideológica, contudo, é aceita com alegria por aqueles que se deleitam em perseguir e destruir tudo o que afeta seu frágil ego. Os que se sentem fracassados, feios, ignorantes, preguiçosos, enfim, os incapazes de atingir a excelência vêem nos pensamentos extremistas uma escusa para sua inépcia e uma forma de culpar o outro, mesmo que isso signifique, a médio prazo, a destruição da sociedade na qual vivem (SUMMERS, 2018).
Vê-se que essa quase hegemonia cultural foi obtida no Brasil já há algum tempo, mas ameaça ruir, daí, como mencionado, a perseguição levada a cabo, inclusive no âmbito das redes sociais.
Isso porque o politicamente correto, diferentemente do pregado por Gramsci, não se limitou à promiscuidade ideológica com as instituições sociais e políticas. O ideal gramsciano era, na linha de Maquiavel, desenvolver uma hegemonia cultural tal que, transcendendo a sociedade anterior, tornasse impossível o retorno ao passado, até pela impossibilidade de conhecê-lo como era (mais uma vez, Admirável Mundo Novo), tudo objetivando a implantação do ideal marxista.
O politicamente correto, porém, tem como objetivo final não a imposição de novas ideias, mas a imposição sobre o outro em si mesma. Cada vez que um objetivo é atingido, um novo é criado, a fim de apontar a vileza da sociedade ocidental, a maldade intrínseca da tradição e do cidadão alcunhado de “comum”, embora seja esse cidadão o responsável pela manutenção do estado por intermédio dos impostos, inclusive dos programas sociais, do sistema de saúde e educacional.
Para aquele que segue a cartilha do politicamente correto, o desiderato é humilhar, oprimir e pressionar o outro, tudo revestido de amor,justiçae uma “santidadeatéia”. O PC se sente a régua social, e, portanto, censor da humanidade, o que cunhou a expressão “social justice warrior”. Claro, uma santidade despida de espiritualidade e de virtudes, já que “a religião é o ópio do povo”.
Em vez de continuar o processo de subversão cultural rumo à hegemonia absoluta, o politicamente correto alterou a rota e se satisfez em impor mais e mais agendas absurdas sobre o povo dominado, contrariando o senso comum, a realidade e a liberdade daqueles que controla, embora diga defender.
A imposição não se limita ao campo cultural, mas ingressa na transformação da própria base do Estado. Com isso, criam-se diplomas legislativos e políticas públicas voltadas para o PC, sem nenhuma preocupação com a efetividade e o impacto social.
A perseguição aos que não seguem a cartilha é clara: da persecução processual penal à mera ridicularização e banimento social, o politicamente correto cria um campo minado no qual até mesmo aqueles que o seguem às vezes pisam em falso (ZERO HORA, 2017).
Mais do que uma classe dominante, os seguidores da cartilha politicamente correta optaram pela tirania, agredindo, às vezes fisicamente, aqueles que se opõem ou apenas não concordam ou não participam de suas demandas arbitrárias.
O debate sério e argumentativo, baseado em fatos e ideias, é substituído por lugares-comuns e clichês progressistas, com ameaças veladas e assassinato de reputações.
Assim, por exemplo, debates sobre gênero, aborto e pedofilia se tornam bandeiras a serem defendidas a qualquer custo, e nisso os fins justificam os meios, afastando a possibilidade de um diálogo produtivo em busca de respostas e soluções.
O espectro exacerbado de tutela dos criminosos, no chamado “garantismo hiperbólico monocular”, é meta do Estado, assim como da mídia e da academia, e nisso pouco importam os mais de sessenta mil mortos por ano ou outras estatísticas que demonstram que a impunidade não só tem se mostrado ineficaz, como tem ampliado exponencialmente a quantidade de ilícitos.
Por outro lado, há uma busca de sancionar avidamente crimes tidos como hediondos pela cartilha, sendo o mais grave deles o delito de opinião, aquela opinião que destoa dos cânones aceitos pelo PC.
Não existe uma coerência sistêmica ou um compromisso com a lógica. Se, por exemplo, os criminosos são vítimas do sistema e devem ser acolhidos, critica-se a leniência punitiva que leva ao femicídio e ao crescente número de estupros. Se o homem é criticado como machista por atos como abrir a porta para a mulher, os mesmos grupos que produzem essas críticas fazem um silêncio eloquente sobre a violação de direitos fundamentais das mulheres em países dominados por culturas realmente patriarcaisou sobre o feticídio feminino eugênico.
A celebração cega do socialismo e a negação da realidade é tamanha que notícias como “crise em Cuba pode ter diminuído diabetes e doenças do coração”, justificando como positiva a falta de comida e de transporte na ditadura de Fidel Castro, não soam absurdas para seus defensores (G1, 2013)
Nessa sociedade formada por uma mentalidade de “credores” de débito histórico, de débito social, de débito cultural, enfim, de débito, cabe ao Estado saldá-lo. Mas o Estado está para a população como a lua para o sol: não possui luz própria e depende de outro para iluminar-se.
Quem mantém o Estado é o contribuinte. No fim das contas, são os oprimidos e odiados pelo PC que sustentam seus seguidores e a perseguição, as ideologias aberrantes e as teses cada vez mais apartadas do real, tendo, como dito, por finalidade a opressão em si e a satisfação do ódio e do autointitulado senso de justiça social, termo tão fluído quanto os compromissos do PC.
Tendo-se abortado o processo de hegemonia cultural e passado à prática de afligir o povo dominado, a classe dominante não se assegurou de que aquele oprimido não possuiria meios de reagir, ainda que fosse simplesmente dizendo “não”.
Nada atormenta mais os ideólogos e militantes do PC do que aquele indivíduo que resiste e nega a doutrinação.
Vários dos chamados intelectuais produziram material que, facilmente, serve para criticar sua própria ideologia, embora, talvez, sejam incapazes de ver essa contradição.
Nessa linha, vale recordar um pequeno conto de Julio Cortazar, presente na obra “Histórias de Cronópios e de Famas”, que ilustra bem a importância da resistência contra a hegemonia cultural, e que faço questão de transcrever na íntegra:
Tema para uma tapeçaria
O general só tem oitenta homens e o inimigo cinco mil. Em sua tenda, o general blasfema e chora. Então escreve uma ordem do dia inspirada, que pombos-correio espalham sobre o acampamento inimigo. Duzentos infantes passam-se para o general. Segue-se uma escaramuça que o general vence facilmente, e dois regimentos se passam para o seu lado. Três dias depois o inimigo tem somente oitenta homens e o general cinco mil. Então o general escreve outra ordem do dia e setenta e nove homens passam-se para o seu lado. Só resta um inimigo, cercado pelo exército do general que aguarda em silêncio. Transcorre a noite e o inimigo não passou para o seu lado.
“O general blasfema e chora em sua tenda. Ao amanhecer o inimigo desembainha lentamente a espada e avança em direção à tenda do general. Entra e olha para ele. O exército do general se dispersa. Sai o sol.(CORTÁZAR,2015)
A sedução do politicamente correto atrai alguns que, às vezes movidos por boas intenções, querem parecer bons conforme os cânones sociais, o que, em sua diminuta compreensão de mundo, equivaleria a ser bom “de verdade”. Outros apenas mantêm-se quietos e aceitam o jugo, na chamada “espiral do silêncio”, com medo demais da perseguição que suas opiniões podem desencadear.
Se parece algo impossível ou teoria da conspiração a ideia de que um grupo dominante busque realizar revisionismo histórico ou alterar as próprias bases da sociedade, é prudente lembrar que isso já ocorreu, como na Revolução Francesa.
Esse episódio histórico, iniciado em 1789, teve um período ainda mais extremista que pretendia modificar a estrutura cultural da sociedade. Surgiu daí a ideia de abolir o calendário gregoriano e assumir um “calendário revolucionário”.
Acabando com a menção a deuses, heróis e santos, criaram uma nova forma de contar o tempo, tendo por ano I o de 1793, data da instauração da República. Contando com 12 meses de três semanas, e semanas de dez dias, excluía-se ainda o domingo, por ser o dia de adoração a Deus, banindo também os feriados cristãos.
A população teve que adotar nomes de meses como Vindimário, Brumário e Ventoso, além dos dias da semana que passaram a ser chamados de primidi a décadi. Até mesmo a passagem das horas foi alterada, com dias de 10 horas, cada hora com 100 minutos e cada minuto com 100 segundos (PINTO).
Obviamente, essa aberração durou só até 1805, quando foi banida por Napoleão, com amplo apoio da população que seguramente não aguentava essa tolice.
Esse proto-comunismo gerado na França impôs ao povo uma drástica mudança cultural. Não só pretendiam a imposição de novos hábitos, como banir toda forma de imaginação, espiritualidade e crença que tornavam o humano… humano, e não uma engrenagem na máquina revolucionária. Um revisionismo e uma supressão da história objetivando a instauração de um novo regime onde a liberdade seria a exceção.
Como um prenúncio da ideologia progressista, negava-se a realidade em absoluto, chegando ao ponto de banir o passar das horas e o calendário gregoriano por pura cegueira de poder, substituindo por uma forma confusa de cálculo de tempo. Afinal, pessoas são descartáveis, a revolução vitoriosa, não.
Nada diferente de sua evolução do século XX, no regime soviético, com a supressão de direitos e garantias individuais por décadas e cujas atrocidades ainda são apenas sussurradas na Terra de Santa Cruz, sem espaço no curriculum escolar.
A redução do ser humano às suas necessidades fisiológicas é, no fundo, uma supressão da dignidade kantiana (apesar do enfoque iluminista)e uma negação das éticas eudaimônicas. Não há indivíduo, apenas coletivo, e o homem serve ao Estado, não o contrário.
A doutrinação ideológica, que começa desde cedo e inclui escola, mídia, grupos sociais e outras instituições, tornam o indivíduo refém da ideologia da massa.
Carl Jung, a esse respeito, afirma que a “resistência à massa organizada só pode ser efetuada pelo homem que é tão bem organizado em sua individualidade quanto a massa em si mesma”(XAVIER, 2008). E isso a classe dominante não permite que aconteça.
Quantos já leram sobre o monomito, o mito do herói, tão bem descrito por Joseph Campbell em seu “Herói de Mil Faces”? Dos que leram, quantos entenderam e vivenciaram a individuação, tiveram condições de apreendê-la?
Se em alguma oportunidade você se pegou pensando duas vezes antes de escrever ou dizer uma palavra com medo da patrulha ideológica, parabéns, você já é vítima da perseguição do PC. Pior ainda são as situações nas quaiso indivíduo sequer pôde pensar na palavra, porque o trabalho ideológico foi tão bem feito que a suprimiu do uso ordinário, significando um empobrecimento da comunicação.
O primeiro passo para escapar da opressão e da doutrinação é aprender a pensar livremente, fora da mente de manada. Isso ninguém pode fazer pelo indivíduo, se não ele mesmo, como ensinamJung, Lao Tsé, Aristoteles e Krishnamurti.
É preciso dizer não àquilo que pareça absurdo, contrário ao bom senso, ilógico ou anti-natural: se soa aberrante, há grandes chances de sê-lo.
É premente lutar contra a censura institucionalizada que se instaurou, como aquela que se estriba no argumento de que somente pessoas com determinadas características podem falar sobre um tema, nada diferente do “espaço de fala” arianodo nazismo. Somos todos humanos e todos podemos falar sobre aquilo que a razão e o coração alcançam. Qualquer coisa menos que a liberdade de se expressar sem opressão é ditatorial.
Esse controle é uma forma de hegemonia de discurso que impede o debate e facilita apenas o reforço de uma única linha de pensamento. É preciso combater o grito e a violência dos militantes, que agem tais quais as ovelhas da Revolução dos Bichos, de George Orwell, gritando ora “quatro pernas bom, duas pernas ruim”, ora “quatro pernas bom, duas pernas melhor”, de acordo com os desejos de seus mestres.
Porém, cabe o alerta: não será fácil, nem cômodo. Quem dissemina o ódio e a opressão não é capaz de aceitar que o oprimido seja capaz de insurgir-se.
Felizmente, em que pesem uns fanatismos e desejos de soluções imediatistas com a reinstalação de governos ditatoriais, o homem comum começa a reagir. Humilhado, vituperado, perseguido, alijado de espaço para expor sua opinião, ele insiste. Mulheres e homens cansados de ter que aceitar que Março seja chamado de Germinale e Janeiro de Nivoso, não querem abrir mão daquilo que é sua tradição e sua cultura e, mais ainda, daquilo que reflete a realidade e o mundo.
Como disse Martin Luther King, “se a história ensina alguma coisa é que o mal é difícil de vencer, tem uma resistência fanática e jamais cede por vontade própria”. É preciso, portanto, insistir e não sucumbir às ameaças e ataques, e, mais importante, não sucumbir à sedução do poder, da fama, do sexo ou até mesmo da mera aceitação social.
O último espaço onde se é livre é na própria consciência. Esse pequeno retiro só lhe podem tomar se lhe aprouver entregá-lo. Caso contrário, nem fogo, nem pedra podem atingi-lo.
O livro 1984 possui um trecho no qual o protagonista Winston é interrogado por seu opressor, representante do Grande Irmão, e a cada resposta errada sofria uma tortura. Há um momento noquallhe mostram quatro dedos e perguntam quantos ele vê, alquebrando seu corpo e seu espírito até que ele diga, e acredite, que vê cinco. Isso porque tudo o que o Partido diz é verdadeiro, o Partidocria a verdade.
Mas enquanto você tiver a capacidade de ver, e continuar vendo, os quatro dedos, por mais que o ameacem ou seduzam para que diga cinco, haverá esperança.
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS:
CODEVILLA, Angelo M. The Rise of Political Correctness. 2016. Disponível em:https://claremontreviewofbooks.com/the-rise-of-political-correctness/
CORTÁZAR, Julio. Histórias de Cronópios e de Famas. 2015. Civilização Brasileira.
G1.Crise em Cuba pode ter diminuído diabetes e doenças do coração.11.4.2013. Disponível em: http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2013/04/crise-em-cuba-pode-ter-diminuido-diabetes-e-doencas-do-coracao.html
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 12aed. 1996. Ed. Hemus.
ORWELL, George. 1984.
____.A Revolução dos Bichos. 34areimpressão. 2014. Companhia das Letras.
PARANOIA. Porque “o Computador é seu amigo”. Garotas Geek. 13.7.2014. Disponível em: https://bit.ly/2MJzLyX
PINTO, Tales dos Santos. "Calendário da Revolução Francesa"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiag/calendario-revolucao-francesa.htm.
SUMMERS, Hannah. Hunky Tory? Attractive people more likely to be rightwing, study finds. The Guardian. 31.1.2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/jan/31/hunky-tory-attractive-people-more-likely-to-be-rightwing-study-finds
XAVIER, Marlon. Arendt, Jung e Humanismo: um olhar interdisciplinar sobre a violência.Saude soc., São Paulo , v. 17, n. 3, p. 19-32, set. 2008 . Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902008000300004&lng=pt&nrm=iso
ZERO HORA. Leandro Karnal apaga foto e justifica jantar com Moro após sofrer críticas.13.3.2017. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2017/03/leandro-karnal-apaga-foto-e-justifica-jantar-com-moro-apos-sofrer-criticas-9746895.html
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.