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PARA QUE EXISTAM JUÍZES EM BERLIM É PRECISO MAIS DO QUE UM TRIBUNAL

Eduardo Perez
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PARA QUE EXISTAM JUÍZES EM BERLIM É PRECISO MAIS DO QUE UM TRIBUNAL

Quem conhece a história do moleiro e do rei, já parou para pensar que não basta um juiz para conter um déspota?


Creio que boa parte das pessoas já ouviu a expressão “existem juízes em Berlim” e qual a moral da história. Dessa vez, porém, quero usar o mesmo episódio para apresentar um novo ponto e vista.


Essa expressão, “existem juízes em Berlim”, refere-se à história do Moleiro de Sans-Souci, na qual, resumidamente, o rei da Prússia, Frederico II, querendo ampliar sua propriedade, pretendeu comprar o moinho que era vizinho a ela.


Fez várias propostas ao moleiro, cada vez mais altas, que se recusava a vender o bem porque era uma propriedade herdada de longa linha de familiares.


Em um dado momento, cansado, o rei disse: “Você sabe que sou rei e posso tomar a propriedade para mim”, no que retrucou o moleiro: “Vossa majestade, isso seria verdade se não houvessem juízes em Berlim”.


O monarca, reconhecendo a ilegalidade de sua pretensão e sua submissão às leis, recuou e nunca mais incomodou o moleiro.


A história é belíssima, mas merece reflexões, e a mais importante dela é que juízes não são seres celestiais que flutuam no éter assegurando uma justiça platônica de acordo com a conveniência de cada um.


A função do juiz é garantir a integridade e conservar um dado sistema jurídico anterior aos casos que examina e de onde tira, inclusive, a validade de sua investidura no cargo. Em outras palavras, o juiz garante a lei, e a lei garante o juiz.


Para que exista o juiz, portanto, é preciso que exista um estado, e esse magistrado irá espelhar a natureza desse mesmo estado. Assim, haverá diferença entre uma Magistratura de um estado de direito, no qual todos são iguais perante a lei e de cujo governo a população participe, e entre uma de sistemas despóticos, ditatoriais e totalitários.


O juiz, por ser garantidor da lei, espelhará o sistema legal ao qual pertence, sendo ele justo ou injusto.


E para falar de justiça e injustiça seria preciso adotar algum paradigma sobre determinada lei, adiantando que sou adepto do Direito Natural (e não da natureza), único capaz de elucidar a existência prévia de um cabedal de “direitos” não positivados, isso é, não escritos e validados por alguma instituição humana.


Por exemplo, a escravidão é injusta pelo paradigma do Direito Natural, mas já foi legal, e juízes garantiram esse sistema, embora possam tê-lo sabotado internamente, como foi o caso de Antônio Bento no Brasil.


Não há muitas dúvidas de que um estado com participação popular é melhor do que um estado no qual uma pessoa, ou um grupo, decide tudo, como são exemplos Cuba e Coréia do Norte.


Além de um estado organizado, é preciso que as leis produzidas por esse estado sejam leis “boas”, isso é, normas que tenham por objetivo melhorar a vida da sociedade como um todo, garantir a segurança e a liberdade da população, sem geração de privilégios ou perseguições.


Até aqui nós temos um (i) estado de direito, (ii) com participação popular e (iii) com leis adequadas.


Falta, é claro, que não haja impunidade, ou seja, que indivíduos não escapem da consequência dos atos que a população, por suas leis, entende ilícitos. Desse modo, pessoas com poder político e/ou econômico estarão tão sujeitas a responder por suas condutas quanto pessoas pobres e sem influência social.


Ou seja, é preciso que as leis sejam efetivas, e não só decorativas.


Perante o Judiciário todos devem ser tratados de forma igual, sem privilégios, sem inexplicáveis suspensões processuais ou estratagemas e teorias cuja única finalidade seja garantir a impunidade de alguns sujeitos. Ou pior, garantir vantagens sobre outros ou sobre a própria população.


Há necessidade, ainda, que o sistema legal seja sólido, e isso depende de duas coisas: um Legislativo sério, que não legisle de forma casuística ou para perpetuar privilégios e garantir impunidade, e um Judiciário que não se considere protagonista social, disposto a mudar a aplicação ou até mesmo a própria letra da lei para se encaixar em um senso pontual e exclusivo de justiça, ou apenas por motivos casuísticos, aplicando a mesma lei de forma diferente para casos idênticos a depender dos interesses.


Recapitulando, para que exista um Judiciário eficiente é preciso um (i) estado de direito, (ii) com participação popular, (iii) com leis adequadas e (iv) que sejam aplicadas, não apenas decorativas, e (v) solidez do ordenamento jurídico, sem alterações constantes pelo Legislativo e sem ativismo ou interpretações esdrúxulas pelo Judiciário.


Por fim, é preciso que os juízes tenham o amparo estatal para a aplicação das leis. Juízes desautorizados pelas instâncias superiores, por um sistema legal leniente, por uma hiperbolização de direitos de partes, advogados e outras carreiras jamais serão juízes capazes de ter tranquilidade para julgar e capacidade de fazer cumprir suas ordens.


Magistrados que possam ser assediados constantemente por advogados, partes, pela mídia, políticos, criminosos e outras categorias no intuito de influenciar seus julgamentos ou afastá-los do processo são sintomas de um estado fraco.


É justamente nessa ponta, a da função de dar efetividade à lei, que se verifica se um estado funciona, se todos realmente são iguais, se é possível esperar um julgamento imparcial e justo.


Se não há o apoio do estado aos seus agentes, sejam eles juízes, policiais, promotores, oficiais de justiça ou o que seja, mas notadamente aqui falamos de juízes, não se pode esperar que toda aquela belíssima estrutura de estado de direito, com parlamentares, presidentes, ministros, assessores, bandeira, hino, medalha, cerimônia, constituição e que tais seja algo mais do que filigranas decorativas a ocultar um estado de exceção no qual as leis são aplicadas de forma arbitrária, quando o são.


Um exemplo de ofensiva seria uma mídia ideológica que viesse a editar audiências ou mesmo o teor de documentos para fazer prevalecer uma narrativa diversa dos fatos e que ocasionasse o ataque ao magistrado e outros profissionais, resultando antes em procedimentos disciplinares abertos imediatamente em desfavor do juiz do que efetivamente uma busca de apuração dos fatos sem que o magistrado fosse tido a priori como culpado, quando deveria ser albergado pelo sistema diante do que representa.


O sistema que permitisse esse tipo de assédio aos seus juízes jamais poderia se declarar como estado de direito, se não um arremedo de organização cujo fundo seria sempre a perpetuação do status quo em favor de grupos e pessoas certas, e não a aplicação da lei em busca de uma sociedade viável.


Para que um moleiro possa se sentir seguro de se negar a cumprir o desejo ilegal e injusto de um rei, é preciso que existam juízes imparciais e independentes, cuja imparcialidade e independência seja garantida por um sistema legal que o apóia, não que o persiga presumindo sua culpa às vezes com base em meras ilações, midiáticas ou não.


É essencial que esse sistema legal seja igual para todos, sem privilégios odiosos, que, por exemplo, favorecessem o rei com tribunais especiais nos quais o processo ficasse suspenso indeterminadamente enquanto o moinho fosse demolido. Também seria preciso que esse ordenamento jurídico impedisse estratagemas antiéticos por qualquer das partes.


Ao final, esse mesmo rei deveria ter ciência de que poderia ser punido, e não de que fosse impermeável à lei, permitindo que praticasse todo tipo de conduta ilícita e que falasse desbragadamente sobre qualquer tema, ciente de sua impunidade.


Para que um moleiro possa dizer a um rei, portanto, que existem juízes em Berlim, não basta que existam juízes em Berlim, pois eles são só a ponta de um vasto iceberg muito maior sob sua superfície.


É possível que ainda existam juízes em Berlim?