O INOCENTE MENINO RHUAN E A COMPADECIDA
O menino Rhuan foi morto por ser quem é, e não quem queriam que ele fosse. Seu martírio, por mais triste, deve ser alvo de reflexão.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! Uma história altamente
moral e um apelo à misericórdia.
JOÃO GRILO
Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que,
se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria
condenada.
Ariano Suassuna escreveu o incomparável Auto da Compadecida, no qual a personagem do título surge como símbolo da misericórdia humana.
O sucesso foi tamanho que peças e até filmes foram feitos.
A primeira vez que tive contato com a obra foi ainda em um cinema de rua, em Santo André, na década de 80, tendo meu pai me levado, junto com meus primos, para assistir a versão feita pelos Trapalhões. Mussum era Jesus e Betty Gofman (podia jurar que era a Lucinha Lins) era a Compadecida.
A versão mais conhecida é aquela moderna, com Matheus Nachtergaele e Selton Mello, excelente por sinal.
E é essa obra que me parece trazer uma das chaves para compreender o suplício do menino Rhuan, por isso tomo a liberdade de, em honra e memória desse inocente, falar um pouco a respeito do assunto.
Quero me ater ao momento do julgamento de João Grilo, do Padre, do Bispo, do Cangaceiro e de toda gente que se encontrava diante de Jesus, nominado Manuel na peça, tendo o Diabo, chamado de Encourado, por acusador.
Quase findando o julgamento, com a perspectiva dos personagens serem condenados ao inferno, diante de uma balbúrdia causada por João diz o Diabo:
ENCOURADO
A confusão já começa. Apelo para a justiça.
JOÃO GRILO
E eu para a misericórdia.
Nessa de Justiça e Misericórdia, diz Manuel:
MANUEL
Com quem você vai se pegar, João? Com algum santo?
JOÃO GRILO
O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que qualquer santo.
MANUEL
Quem é?
JOÃO GRILO
A mãe da justiça.
ENCOURADO, rindo
Ah, a mãe da justiça! Quem é essa?
MANUEL
Não ria, porque ela existe.
BISPO
E quem é?
MANUEL
A misericórdia
Diz Manuel que a mãe da Justiça é a Misericórdia, e vai João fazer o chamado daquela pessoa que ele acreditava que salvaria a todos do submundo.
JOÃO GRILO
Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial,
em verso. Garanto que ela vem, querem ver?
(Recitando).
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré
Durante o verso, o Encourado diz a João que ele está agindo de forma desrespeitosa, no que ele responde, recordando aqui a dupla imagem da mãe: aquela mãe pobre e sofrida que o criou e ninava para dormir e a mãe de Jesus:
JOÃO GRILO
Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito!
Com o chamado, é a figura da mãe compassiva que entra em cena, aquela que compreende, aquela que acolhe, aquela que defende, aquela que protege os seus filhos, no caso, a humanidade.
O Encourado insiste que João Grilo está desrespeitando a Compadecida, indagada, ela esclarece:
A COMPADECIDA
Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo.
JOÃO GRILO
É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito.
A COMPADECIDA
É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.
Em outro trecho, ao rezar uma Ave-Maria, João sugere trocar o “agora e na hora de nossa morte” por “agora na hora de nossa morte”, respondendo a Compadecida:
A COMPADECIDA
Não precisava fazer a modificação, João. Eu entenderia.
JOÃO GRILO
É, a senhora eu acredito que entendesse, mas aquele sujeito ali, com muito menos do que isso, faz uma confusão.
Até a imagem do Diabo, o Encourado, tem sua maldade relacionada à ausência de uma mãe:
ENCOURADO
Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo.
SEVERINO
Você só fala assim porque nunca teve mãe.
JOÃO GRILO
É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira!
O texto de Suassuna comove, porque ele trata de forma universal, usando personagens locais, os temas da Justiça, da Misericórdia, da pobreza, do sofrimento, da amizade e tantos outros.
E a entrada de Nossa Senhora, a Compadecida, no julgamento até hoje me leva às lágrimas. É a síntese daquilo que é a mãe.
Por isso tem sido tão difícil e causa tanta indignação o que foi feito com o pequeno Rhuan, de 9 anos, por sua mãe, Rosana Auri da Silva Cândido, e sua companheira, Kacyla Priscila Santiago Damasceno Pessoa.
A partir daqui peço aos leitores mais sensíveis que pulem os parágrafos seguintes até a parte indicada, esclarecendo que estão sendo tomadas como base as notícias da investigação policial.
*****
Conforme noticiado, Rosana tinha ódio de Rhuan e queria que ele fosse uma menina, por sua ideologia(2). Nele dizia ver a figura do pai, seu ex-marido, e do avô. Ambas tinham ojeriza pela figura masculina.
Haveria suspeita também de fanatismo religioso, segundo testemunhas.
Um ano ou dois antes de ser assassinado, conforme investigações, Rhuan teve sua genitália removida artesanalmente, com a retração da uretra e a formação de uma pústula, por onda saia a sua urina, sempre com muita dor (3).
Era proibido de sair para brincar, ir à escola ou ter contato com outras crianças.
No fatídico dia 31 de maio, de acordo com a Polícia Civil, Rhuan dormia quando sua mãe aproximou-se e deu-lhe a primeira facada no peito. Assustado, ele se levantou da cama e ajoelhou-se ao lado da mãe, recebendo mais onze golpes. Seu corpo ainda agonizava quando sua mãe arrancou-lhe a cabeça, depois, esquartejou-o, enquanto sua companheira ligava a churrasqueira na qual pretendiam jogar os restos mortais (4).
Sem conseguir assar o corpo, dividiram os membros do pequeno Rhuan em duas mochilas e descartaram.
O pai de Rhuan obteve a guarda do menino na Justiça há mais de três anos, mas nunca o localizou até o seu homicídio.
*****
Tanta tolice tem sido escrita sobre essa inominável crueldade!
Já li até mesmo um texto (mal) escrito defendendo o aborto porque a suposta homicida não tinha perfil de mãe. Ignorando, em prol da ideologia do aborto, que ela sequestrou a criança cuja guarda era do pai e o submeteu a torturas físicas e psicológicas até sua morte. A suposta criminosa não tinha a obrigação de ficar com a criança.
Pode-se dizer o que for, mas mãe é mãe. Não é um preconceito, não é um “papel socialmente imposto”, não é uma “criação do patriarcado”.
Mãe é mãe, já que igualmente no reino animal se vê o carinho com que os filhotes são criados e fêmeas adotam crias abandonadas de outras espécies.
Mãe é mãe, não importa se o filho veio do seu ventre ou não, se é um ou se são cem.
Plutarco (46 d. C - 120 d.C.) trata também do amor materno, humano e não humano, em sua obra “De amore prolis” (5), tal como Aristóteles (384 a.C - 322 a.C.), em sua Ética a Nicômaco (6).
A literatura é extensa a respeito e retroage a bem antes dos autores gregos citados. Os exemplos antropológicos são notórios e encontrados em todos os povos em todas as eras, não importa quão espalhados.
A conclusão é sempre única: mãe é mãe.
É aquela mãe chinesa que, durante o incêndio em seu apartamento, arremessou os lençóis pela janela e pediu para que as pessoas na rua fizessem uma rede, jogando então seus filhos de dois e nove anos de idade para serem salvos, morrendo sufocada em seguida (7).
É Nancy Edison, cujo filho mais novo foi classificado pelo professor como mentalmente incapaz, e ela, insatisfeita, passou a ensinar-lhe em casa (homeschool), tornando-se o conhecido Thomas Alva Edison (8)
É Lao Xiaoying, que vivia de escarafunchar o lixo em Jinhua, na China, para sobreviver e que, junto com seu marido, salvou mais de 30 bebês jogados fora por seus pais. Seu filho mais novo foi encontrado numa lata de lixo quando ela tinha 82 anos (9).
Disse Lao:
“Tudo começou quando eu encontrei o primeiro bebê, uma garotinha, em 1972, quando eu estava coletando lixo. Ela estava lá deitada entre a sujeira na rua, abandonada. Ela teria morrido se nós não a salvássemos e a levássemos.
"Observá-la crescer e tornar-se mais forte nos deu tamanha felicidade e percebi que tinha um amor verdadeiro por cuidar de crianças.
"Percebi que se tínhamos força suficiente para coletar lixo, como não poderíamos reciclar algo tão importante quanto a vida humana"
'Essas crianças precisam de amor e cuidado. São todas vidas humanas preciosas. Eu não entendo como as pessoas podem deixar um bebê tão vulnerável nas ruas”.
É minha amiga, de tantas amigas mães que aqui homenageio, Joanna Feu Rosa, que quando descobriu, durante seu tratamento contra o câncer, que estava grávida e foi orientada pelo médico a abandonar a gestação, trocou de médico. Hoje, aposentada como juíza em razão da doença, cuida de seus três lindos e saudáveis filhos, incluindo José, aquele que deveria ter sido abortado (10).
Não há mãe no mundo que não tenha se sacrificado por seus filhos. Que tenha aberto mão de sua vida, de suas necessidades, de seu interesse, e muitas vezes até de sua comida e sua roupa, para atender às necessidades da prole.
Dirão alguns que isso é um estereótipo. Que é imposição do “patriarcado”, de uma “sociedade machista”.
É verdade que nem todo mulher nasceu para ser mãe, e é justamente a exceção que prova a regra.
Como desonra o sacrifício dessas mães, da minha mãe, por um segundo que seja acreditar que isso é uma imposição social, um comando biológico, uma escravidão do patriarcado.
Que condicionamento social, que comando biológico seria capaz de fazer com que uma mãe suporte toda sorte de humilhações, de privações e de dores por sua cria? De entregar a vida. De ser submetida à tortura. De ser rebaixada, aviltada. E mais: fazer tudo isso com esperança de que é o melhor para suas crianças.
É justamente o inverso da biologia, que nos manda fugir da dor e do perigo.
Histórias são tantas que não há biblioteca no mundo capaz de contê-las.
Perdi a conta de quantas mães de preso já ouvi como juiz. Cansei de dizer aos condenados que honrassem seus pais, porque o chão do fórum estava gasto de tantos passos de mães humildes pedindo por eles.
“Eu sei que ele errou, mas é meu filho, doutor”, dizem as mães. Mãe é sagrada, inclusive a dos outros. Por isso devem ser recebidas como uma benção, porque o amor de mãe ajuda a manter esse mundo fragmentado minimamente coeso.
Quem insiste nas teses ideológicas de desconstrução desse sacro ofício materno o faz com a virulência da “justiça”, a mesma defendida pelo Encourado.
Para eles, tudo que os desagrada em sua ideologia é falta de respeito, é ofensa, é preconceito, é fascismo. De tudo fazem confusão.
O que pode vir de tanta tristeza e tanto ódio, travestidos de “mais amor por favor”?
Como disse João Grilo:
“É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito”.
(…)
“É, a senhora eu acredito que entendesse, mas aquele sujeito ali, com muito menos do que isso, faz uma confusão”.
A Compadecida riu da brincadeira de João e achou gosto, mas o Encourado, para seus próprios fins, pediu respeito a ela que em nada se sentiu desrespeitada. É de desconfiar ver o Diabo defendendo os direitos da mãe de Jesus.
Como disse Nossa Senhora:
“É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado”
Apegar-se às aparências das coisas, definir o mundo pela matéria, esquecendo ou tentando apagar todo traço de imaterialidade que forma o humano é, de fato, coisa do Encourado.
Um menino que se quer transformar em menina. Uma criança que se quer forçar “a ser macho”. Imaginem outros exemplos. A vitória da matéria sobre a essência.
Somente o diabo se compraz com a tristeza, com a confusão, e se regozija de tornar a Justiça um instrumento de opressão e iniquidade.
Rhuan, inocente, torturado, confuso, ajoelhado sangrando ao lado da sua mãe algoz, seria o símbolo da subversão da razão e da compaixão. Seria a vitória do ser apegado às formas.
O menino que nunca pode ser menino, que nunca foi criança, que nunca teve mãe.
A existência de martírio que nos chega somente ao final como história, já impotentes em poder mudar algo, deve servir para além da indignação momentânea que passará com o primeiro escândalo de um famoso qualquer.
Esse martírio nos aponta a importância de olhar para tantos outros “Rhuans” cujo silêncio é um grito de socorro que demanda nossa atenção. Crianças estão sendo impedidas de existir por adultos que se comprazem em transformá-las em objetos de sua ideologia, ignorando que são seres em si e como tal devem ser considerados.
O alerta está dado há muito tempo. Para além de fanatismos de qualquer sorte, para além de ideologias, existe o que nos torna humanos e demanda a compaixão por outro ser humano.
Se não, nada mais faz sentido.
Quanto a Rhuan, não há mais dor. Por certo nunca conheceu o versinho de João Grilo, mas dele não precisará. Não haverá julgamento em que precise da misericórdia da Compadecida, as portas do Céu certamente não se fecham aos inocentes.
Nós que apelamos à misericórdia, “porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada.”
FONTES:
(1) SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. Agir. 35a Edição.2013.
(2) Polícia: mulher que matou e esquartejou filho de 9 anos disse que o odiava. Jessica Nascimento. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/06/12/policia-mulher-que-matou-e-esquartejou-filho-de-9-anos-disse-que-o-odiava.htm. Acesso em 13.6.2019.
(3) Assassinato do menino Rhuan é roteiro de um filme de terror. Ana Maria Campos
(Correio Braziliense). Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/brasil/2019/06/12/interna_brasil,791073/assassinato-do-menino-rhuan-e-roteiro-de-um-filme-de-terror.shtml. Acesso em 13.6.2019.
(4) Laudo mostra que menino Rhuan foi degolado vivo pela própria mãe. Da Redação https://istoe.com.br/laudo-mostra-que-menino-rhuan-foi-degolado-vivo-pela-propria-mae/. Acesso em 13.6.2019.
(5) PLUTARCO. On Affection for Offspring. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Plutarch/Moralia/De_amore_prolis*.html. Acesso em 13.6.2019.
(6)ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. São Paulo. Abril Cutural, 1984. Acesso em 13.6.2019.
(7) Mother saves children from burning building in China – but help arrives too late for her. Zhou Jiaquan. Disponível em: https://www.scmp.com/news/china/society/article/2158478/mother-saves-children-burning-building-china-help-arrives-too. Acesso em 13.6.2019.
(8) 25 of History's Greatest Moms. Suzane Raga. Disponível em: http://mentalfloss.com/article/79143/25-historys-greatest-moms. Acesso em 13.6.2019.
(9)The truly inspiring story of the Chinese rubbish collector who saved and raised THIRTY babies abandoned at the roadside.Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/news/article-2181017/Lou-Xiaoying-Story-Chinese-woman-saved-30-abandoned-babies-dumped-street-trash.html. Acesso em 13.6.2019.
(10) Instagram da Associação dos Magistrados do Espírito Santo - AMAGES. Disponível em: https://www.instagram.com/p/ByI9FrljotC/. Acesso em 13.6.2019.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.