O EFEITO MORO, A IRA DA VELHINHA DE TAUBATÉ OU PORQUE O POVO SE CANSOU DE BANDIDO
Para a população não interessa mais o discurso da "aristocracia intelectual" brasileira, querem que a lei tenha efeito, a Justiça se faça presente e que a impunidade não seja mais a regra no país.
O presente artigo tem cunho acadêmico e não propõe a estabelecer uma crítica ou uma assertiva sobre o cenário nacional, mas lançar conjecturas reflexivas sobre o que ocorre.
Muito tem se falado sobre os supostos vazamentos de conversas havidas entre o Ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando ainda juiz, e o procurador federal Deltan Dallagnol acerca dos processos criminais da Operação Lava-Jato.
Um artigo bem interessante sobre o assunto é do professor de Direito de Harvard, Matthew Stephenson, entitulado “O incrível escândalo que encolheu? Novas reflexões sobre os vazamentos da Lava Jato” (1).
O autor havia escrito um primeiro texto a respeito (2), mas nesse segundo reflete melhor sobre o tema, conforme reportagem do site O Antagonista para quem tem pressa e quer ler o resumo (3).
E tudo isso antes de prenderem os supostos hackers, uma história que ainda está longe de acabar.
Resumindo, o artigo reconhece que “a montanha pariu um rato”, pois o esperado “escândalo”, se as mensagens não foram adulteradas, não macula as decisões dos processos, inclusive as condenações do réu Luis Inácio da Silva, o Lula, não demonstra qualquer tendência a ideologia de direita pelos interlocutores ou hostilidade político-partidária, vez que as condenações não se limitaram a uma sigla de partido e que o sistema processual brasileiro não veda tais conversações.
Nem mesmo a emissora internacional alemã Deutsch Welle, que entrevistou o Luís Greco, professor catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Penal estrangeiro e teoria do Direito Penal na Universidade Humboldt, de Berlim, em uma matéria com a pouco tendenciosa chamada "Não é tarefa do juiz combater o crime”, conseguiu extrair uma afirmação mais drástica do que “essas condutas, na Alemanha, não seriam criminosas. Mas seguramente fundamentariam uma suspeição, com a exclusão do juiz do processo, principalmente por terem ocorrido às costas da defesa” (4).
É a opinião (doxa) de uma pessoa sobre a legislação de um país estrangeiro. Qualquer validade do conhecimento (episteme) exigiria um estudo de como é na Alemanha e, mais importante, como é no Brasil, país no qual a situação é muito diferente.
Pinçar legislações estrangeiras, aplicáveis no solo de origem, e tentar inseri-las no contexto brasileiro não é novidade, e também não é novidade que isso ocorra no melhor estilo “pombo enxadrista”, sempre de modo pontual e casuístico para atender a um interesse. Curiosamente, isso também ocorre na música. Que o diga o (in)sucesso “Juntos e Shallow Now”, versão tupiniquim da música da cantora Lady Gaga.
De fato, em outros países, nos quais os juízes não só possuem efetivo poder de julgar, como lidam com uma legislação bem menos “compreensiva” com o crime do que a brasileira, o atendimento das partes é diferente.
Vejamos o que diz o Código de Conduta dos Juízes dos Estados Unidos, no item 4 do 3º Cânon: Um Juiz deve exercer as tarefas do gabinete de maneira justa, imparcial e diligente (5):
“(4) Um juiz deve garantir a todas as pessoas que têm interesse legal em um processo, e ao advogado dessa pessoa, o pleno direito de ser ouvido de acordo com a lei. Exceto conforme estabelecido abaixo, um juiz não deve iniciar, permitir ou considerar comunicações ex parte ou considerar outras comunicações relativas a um assunto pendente ou iminente que sejam feitas fora da presença das partes ou de seus advogados. Se um juiz recebe uma comunicação ex-parte não autorizada acerca do mérito de um processo, deve notificar prontamente as partes sobre o assunto da comunicação e permitir que tenham a oportunidade de responder, se solicitado.(…)”
Existe previsão similar na Regra 2.9: Comunicações Ex Parte, no Código Modelo de Conduta Judicial da American Bar Association, a OAB dos Estados Unidos (6).
Sobre o tema, há interessante artigo de Jay Carlile, de 1986, destacando como já na época a relevância do juiz receber e se comunicar com as partes de forma transparente (7).
Ainda nos EUA, a página do Judiciário do Estado do Havaí tem uma área de perguntas e respostas com o título “Por que não posso falar ou escrever para o Juiz”, direcionada aos leigos, nos quais se esclarece o que é a “comunicação ex parte”, ou seja, aquela feita unilateralmente por uma das partes com o juiz, sem o conhecimento da outra, e que a vedação desse tipo permite que o juiz julgue apenas com base nas evidências e argumentos do processo a que todos possuem acesso (8).
A mesma página destaca que a insatisfação com o conteúdo de uma decisão judicial deve ser feita por via da apelação para a corte, valendo citar que no Brasil, ao contrário, criou-se o costume de “recorrer” da decisão judicial para a imprensa ou às corregedorias ou ao CNJ, mais na tentativa de atacar o magistrado do que o conteúdo da decisão.
Essa prática dos Estados Unidos de comunicação ex parte nunca existiu no Brasil. Quando, em 2007, a ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi, determinou o agendamento prévio por parte dos advogados automaticamente avisando a outra parte para comparecer ao ato se quisesse, foi alvo de um mandado de segurança por parte da Associação dos Advogados de São Paulo (9):
“Ela argumenta que este procedimento oferece o contraditório a todos os envolvidos no processo e confere mais transparência. “O que eles querem? Querem trabalhar sem transparência?”, questiona a ministra sobre a iniciativa da Aasp. “Nunca me recusei a receber os advogados. Eles estão querendo comparar um ministro com um juiz de primeiro grau”, afirma”.
A assertiva da ministra foi muito feliz, inclusive quanto ao comentário de que ministro não é juiz de primeiro grau, pois o tempo mostrou, de fato, o abismo entre ambos. E a essa medida podem se somar inúmeras outras que levaram a OAB a acionar o Conselho Nacional de Justiça, que por sua vez manifestou-se dizendo que o juiz deve atender ao advogado a qualquer momento.
Assim, é do sistema brasileiro, diferentemente do norte-americano, esse contato entre juiz e partes ou advogados, promotores de justiça e defensores públicos.
Para boa parte do povo brasileiro, porém, esse tipo de discussão soa irrelevante. O anunciado “escândalo” envolvendo o atual Ministro da Justiça e então juiz e o Ministério Público Federal aparenta não ter causado o efeito esperado pela militância político-partidária e seus adeptos, mesmo considerando que as mensagens tenham sido verdadeiras.
O que tudo indica é que parte considerável da população se mostra excessivamente cansada da corrupção e do crime. Assim, se titulares de poder e servidores públicos, sem cometer ilegalidades, dialogam entre si para combater a criminalidade, parece que tanto melhor para o povo e tanto pior para os bandidos.
Aliás, as décadas de defesa e aceitação da criminalidade, seja nas políticas públicas, na legislação e em entendimentos jurisprudenciais, seja no cinema, na televisão, na arte em geral, na propaganda, nas escolas e universidades, com teses que observam sempre o agente criminoso ora como um revolucionário, ora como uma vítima do sistema, parecem ter conduzido a um estado insustentável de coisas para boa parte das pessoas. Resumindo: ninguém aguenta mais viver no mundo do Bizarro, aquele inimigo do Super-Homem para quem tudo era o contrário do que a realidade mostrava ser.
Essa insistência ideológica que subverte o real lembra demais uma personagem criada pelo escritor Luis Fernando Veríssimo, que conheci na década de 80: a Velhinha de Taubaté (10).
Resumindo, essa velhinha era a última pessoa que ainda acreditava no governo, ou melhor, na política brasileira. Toda a propaganda governamental era voltada para ela exclusivamente. Pelo que me lembro de ter lido, dizia o autor que o dia em que a velhinha morresse, os políticos viriam à televisão dizer, descaradamente, que era isso aí e ninguém mais fingiria nada.
Bom, Veríssimo matou a velhinha em 2005, por conta do mensalão (11). Parece, contudo, que a Velhinha de Taubaté deixou incontáveis sobrinhos-netos por aí.
Para esses herdeiros da Velhinha de Taubaté, qualquer lacrada de Twitter se sobrepõe a uma sentença condenatória de mais de duzentas páginas. Qualquer discurso embriagado, de emoção ou álcool mesmo, é mais real que a realidade de milhares de provas de página ou do sangue dos inocentes que escorre abundantemente.
Quando alguma figura política, artística, ativista, não sei, aparece para chamar alguém de fascista, ela não se dirige ao povo brasileiro, mas aos sobrinhos-netos da Velhinha. Eles sabem que qualquer pessoa razoavelmente sã, ou seja, a partir de quem não joga pedra em avião voando, vai rir dos seus discursos. Mas o objetivo é a narrativa que convence a militância “taubateana” (que me desculpem os taubateanos verdadeiros).
Quando dizem que os diálogos de Sérgio Moro são criminosos e pedem sua prisão, que ele é agente da CIA, que Cuba é uma democracia e a Venezuela é um exemplo de país a ser seguido, estão falando só com a descendência da Velhinha mesmo, e mais ninguém. O mesmo vale para as velhinhas de sinal trocado, aquelas que defendem seu político a todo custo, inclusive contra a verdade.
E não adianta mostrar os fatos. Estamos diante da crença, uma crença tão arraigada que é capaz de negar a mais sólida realidade, tal qual a Velhinha durante os anos 80 até a sua morte “prematura” e que não teve a possibilidade de ver o que viria depois, como a própria Lava Jato.
Sem juízo de valor, a atualidade mostra um Brasil cada vez mais acordado e cada vez menos “Velhinha”, disposto a ver os culpados punidos no rigor da lei, não importa se usam terno ou bermuda. E quanto mais o discurso (e a prática!) habitual de impunidade se faz presente, maior a descrença no estado como forma de solução de conflito e maior a sede de justiçamento popular. Ou seja, os defensores apaixonados dos bandidos considerando-os como heróis ou como vítimas, verdadeira bandidolatria, conduzem a sociedade para o oposto do que pretendiam, que é o aumento da violência e o descrédito do sistema legal. Não tem sido raro casos em que a população pratica justiça com as próprias mãos porque não acreditam no sistema.
Em suma, decisões e práticas ideológicas em prol da liberdade das “vítimas do sistema” só geram a ruptura do pacto social e o fim da sociedade.
E já que estamos na onda de lembrar do passado, em 1995 a banda Paralamas do Sucesso lançou uma música chamada “Luís Inácio (300 picaretas)”, com o seguinte trecho (12):
Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou
São trezentos picaretas com anel de doutor
(…)
Eles ficaram ofendidos com a afirmação
Que reflete na verdade o sentimento da nação
(…)
Brasília é uma ilha, eu falo porque eu sei
Uma cidade que fabrica sua própria lei
Aonde se vive mais ou menos como na Disneylândia
Se essa palhaçada fosse na Cinelândia
Ia juntar muita gente pra pegar na saída
Pra fazer justiça uma vez na vida
Eu me vali deste discurso panfletário
Mas a minha burrice faz aniversário
Ao permitir que num país como o Brasil
Ainda se obrigue a votar por qualquer trocado
Por um par se sapatos, um saco de farinha
A nossa imensa massa de iletrados
Mais de vinte anos depois, o que dizer dessa música e dessa militância?
Depois de tudo o que se viu e provou, é curioso observar que a Velhinha de Taubaté não era e nunca foi, ao longo de todos esses anos, a única de sua espécie.
REFERÊNCIAS:
(1)STEPHENSON, Matthew. The Incredible Shrinking Scandal? Further Reflections on the Lava Jato Leaks. Disponível em: https://globalanticorruptionblog.com/2019/06/17/the-incredible-shrinking-scandal-further-reflections-on-the-lava-jato-leaks/. Acesso em 20.06.2019.
(2) STEPHENSON, Matthew. Just How Damning Are the Lava Jato Leaks? Some Preliminary Reflections on The Intercept’s Bombshell Story. Disponível em:https://globalanticorruptionblog.com/2019/06/11/just-how-damning-are-the-lava-jato-leaks-some-preliminary-reflections-on-the-intercepts-bombshell-story/. Acesso em 20.06.2019.
(3) Em novo texto sobre as mensagens roubadas de Dallagnol, professor de Harvard fala no ‘incrível escândalo que encolheu’. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/em-novo-texto-sobre-as-mensagens-roubadas-de-dallagnol-professor-de-harvard-fala-no-incrivel-escandalo-que-encolheu/. Acesso em 20.06.2019.
(4) "Não é tarefa do juiz combater o crime”. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/não-é-tarefa-do-juiz-combater-o-crime/a-49224555. Acesso em 20.06.2019.
(5) Code of Conduct for United States Judges. United States Court. Disponível em: https://www.uscourts.gov/judges-judgeships/code-conduct-united-states-judges. Acesso em 20.06.2019.
(6) Rule 2.9: Ex Parte Communications. Model Code of Judicial Conduct (8.16.2018). American Bar Association. Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/professional_responsibility/publications/model_code_of_judicial_conduct/model_code_of_judicial_conduct_canon_2/rule2_9expartecommunications/. Acesso em 20.06.2019.
(7) CARLISLE, Jay C. Ex Parte Communication by the Judiciary, N.Y. St. B.J., Nov. 1986, at 12, h p://digitalcommons.pace.edu/lawfaculty/ 619/. Acesso em 20.06.2019.
(8) Why Can’t I Talk or Write to the Judge?. Hawai’i State Judiciary. Disponível em: https://www.courts.state.hi.us/self-help/exparte/ex_parte_contact. Acesso em 20.06.2019.
(9) Nancy Andrighi receberá advogados em qualquer dia e horário. Consultor Jurídico. 16.07.2007. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-set-16/nancy_andrighi_libera_atendimento_advogados_stj. Acesso em 20.06.2019.
(10) Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Velhinha_de_Taubaté. Acesso em 20.06.2019.
(11) Velhinha de Taubaté (1915-2005). Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI15482,61044-Cronica+a+Velhinha+de+Taubate. Acesso em 20.06.2019.
(12) Disponível em: https://www.vagalume.com.br/paralamas-do-sucesso/luis-inacio-300-picaretas.html. Acesso em 20.06.2019.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.