O CRIME CONTRA VIVIANE E A CUMPLICIDADE SILENCIOSA DO BRASIL
A violência no Brasil é uma realidade que aparece apenas no anonimato frio das estatísticas. O criminoso é o protagonista que se apresenta sobre um palco construído com sangue e lágrimas das vítimas e seus parentes. Ninguém olha o palco, mas todos concentram sua atenção em Sua Excelência, o réu.
Antes de falar um pouco sobre violência no Brasil, especialmente a violência contra a mulher, vou contar uma história.
Dizem que um rapaz chegou a cavalo em uma vila para fazer compras e, ao entrar no galpão, deixou seu cavalo desamarrado do lado de fora, por descuido, e ao sair descobrira que fora vítima de furto.
Assim como urubus se juntam em volta da carniça, os desocupados que gostam de desgraça se juntaram em volta do rapaz recriminando-o por não ter amarrado o cavalo, por não ter sido cuidadoso e olhado o que fazia, por ter perdido tempo demais fazendo compras.
De tanto ouvir, em um momento o rapaz disse: tudo bem, eu esqueci de amarrar o cavalo, mas ninguém vai falar nada do ladrão?
No Brasil precisamos cada vez mais falar do “ladrão”, não para dizer que ele precisa de um abraço, de cartinhas de incentivo, de segundas chances, mas para que ele seja punido.
Na véspera do Natal de 2020 a juíza de Direito Viviane Vieira do Amaral Arronenzi foi morta por seu ex-marido, Paulo José Arronezi, com quem foi casada por onze anos, a facadas diante das três filhas do casal, que possuem entre 7 e 9 anos.
Dizem que ao ser questionado sobre a morte, o assassino dera de ombros, como se pouco importasse.
O crime recebeu grande repercussão porque Viviane era juíza muito querida e dedicada.
A violência no Brasil, contudo, é uma realidade que aparece apenas no anonimato frio das estatísticas. Já disse em outros artigos que em nosso país o criminoso é o protagonista que se apresenta sobre um palco construído com sangue e lágrimas das vítimas e seus parentes. Ninguém olha o palco, mas todos concentram sua atenção em Sua Excelência, o réu.
No caso da mulher essa violência é muito mais complicada. Há, e não adianta negar, uma cultura de que a mulher é posse do homem.
Hoje mesmo fui fazer compras com a esposa e no mercadinho tocava algum sertanejo lamentável cuja letra era mais ou menos do protagonista contando como bebia e “dava tapa na cara dela”.
A (a)cultura brasileira está cheia dessas músicas na qual o homem agride, trai, bebe, bate, ou trata só a mulher como um objeto para satisfação de sua lascívia. Não raro cantadas por mulheres, como se vê no tal funk. E chamam isso de “empoderamento” feminino.
O homem traído, ou que pensa ser traído, se considera não só no direito, mas no dever de agredir e até matar sua companheira. É preciso dar uma resposta, afinal, para a sociedade, para os amigos. Macho que é macho se vinga, não é?
E mesmo quando não há traição, há sempre o sentimento de posse. Mulheres que são proibidas de estudar, até de sair de casa, que dirá de terminar o relacionamento, e não têm a quem recorrer.
A verdade deve ser dita: o que chega ao Judiciário é a desgraça pronta. A mulher já foi agredida, quiçá morta, e aí só basta a aplicação de nossas lenientes leis que permitirão que dentro em pouco o agressor esteja nas ruas, se é que virá a ser preso e não cumprirá regimes como aberto e semi-aberto, que são para “inglês ver”.
Ameaça? O crime de ameaça tem pena mínima de um mês e máxima de seis meses. O agressor sai rindo, dizendo que vai pagar “só uma cesta” de pena. E não está errado. Isso quando é condenado, já que raramente na intimidade do lar é possível provar o crime.
Uma vez fiz uma audiência de violência contra a mulher na qual a vítima, uma senhora de meia idade, desmentia a denúncia, dizendo que estava confusa na época. Ao ser pressionada pelo promotor de justiça diante das inconsistências, virou-se para mim e disse, em lágrimas: doutor, eu estou passando fome com ele preso.
Assim, a mulher acaba suportando por medo, por fome, por receio de vir algo pior, por acreditar que “homem é tudo igual” e o próximo será tão ou mais agressivo, e essa é sua sina, a de eterna vítima. Essa mesma sina é transmitida às suas filhas que permanecerão nesse cárcere moral, quando não real, repercutindo essa subserviência agravada pela pobreza e ausência de alternativas.
É verdade, sim, que a mulheres precisam descobrir a força em si. No caso da violência doméstica o agressor já está dentro de casa ou muito próximo. Esperar chegar a proteção estatal em forma de polícia? Até lá já é tarde.
As mulheres precisam descobrir sua própria força e defender-se quando podem, mas essa é a última barreira. Há todo um caminho longo até lá que poderia evitar que as coisas chegassem a esse ponto.
Para isso precisam que toda a sociedade esteja com elas. Aliás, com elas e com toda e qualquer vítima de violência.
As autoridades devem parar de “lamentar” quando ocorre um crime como o que vitimou Viviane e agir em conformidade com o que é certo, se não por respeito às vítimas, pelo menos porque poderia ter sido sua filha, sua irmã, ou você, ou até por honra, artigo em falta e que de onde eu vim a gente sempre chamou de “vergonha na cara”.
De nada adiantam notas e campanhas para que as mulheres denunciem, façam um “x” vermelho em suas mãos, se é muito provável que o agressor chegue em casa antes delas, que esteja na rua antes mesmo do último policial prestar depoimento na delegacia de polícia.
Há nessa equação torpe também uma cumplicidade do estado e da sociedade com o agressor, a ideia de que o bandido é alguém “perdido”, “confuso”, que precisa de “oficinas” para melhorar sua “masculinidade tóxica”.
Recordo-me de um pedido de soltura que recebi dizendo que o agressor, que eu mantivera detido em flagrante, era primário, de bons antecedentes e trabalhador. Neguei, mantendo preso o agressor, explicando que dentre as suas várias peripécias o “cidadão de bem primário e trabalhador” arrancara um dente de sua companheira com um soco e a tragédia só não foi pior porque houve quem acudisse.
Se solto, seguramente iria para sua casa vingar-se naquela que é a vítima preferida de todo frustrado: a que depende dele.
Mas a prisão era apenas processual, pela periculosidade, a pena do crime em si era ridícula de pequena e rapidamente o agressor estaria em liberdade, se condenado.
Sim, é importante que quem agride tenha a oportunidade de repensar sua postura na sociedade, ver a vítima e qualquer outra pessoa como um ser humano como ele, e até de buscar perdão. Só que isso tudo é uma situação do condenado com ele mesmo e com Deus.
Cadeia não é lugar para terapia. O momento da terapia ficara lá atrás, desperdiçado enquanto o agressor se sentia impune para praticar suas maldades, cessadas, ao menos temporariamente, com sua segregação.
Quantas audiências não fiz nas quais os réus debulhavam-se em lágrimas dizendo-se arrependidos? Esse arrependimento, curiosamente, chegara somente depois que foram presos.
Uma vez um réu que executara um jovem em praça pública por ciúme de sua companheira dissera que estava muito arrependido, não queria o que estava passando nem para o pior inimigo dele. Nenhuma palavra sobre a vítima ou a família da vítima. Todo o problema girava em torno dele, réu, que sentia pena de si mesmo, e apenas de si, por algo que fizera voluntariamente e do qual claramente não se arrependia de ter feito, mas só de ter sido pego.
É urgente abandonar todas as teorias sem sentido e assumir um fato inegável: o ser humano, certo ou errado, age apenas por consciência ou por interesse/medo.
Se a pessoa tiver consciência do próximo, não irá roubar, não irá matar, estuprar, agredir. Mas se ele não tiver consciência, deve ter pelo menos medo das consequências e pensar em si mesmo (interesse), já que sabidamente a maioria esmagadora dos criminosos é narcisista/egoísta.
Se não existem penas suficientes, se o sistema penal é fraco, se as mulheres continuam a serem vítimas indefesas, se persiste a cumplicidade silenciosa do sistema para com o agressor, o que resta é só esperar com fé na humanidade que o bandido tenha consciência.
O resultado disso tudo nós sabemos. O Brasil, um país de leis fracas que raramente são aplicadas, e, quando aplicadas, são incapazes de impedir novos crimes, é a prova inconteste do que é uma população sem senso de comunidade deixada à sua própria consciência.
Precisamos de leis sérias, de penas reais ou que pelo menos sejam cumpridas de verdade, e não com faz-de-conta de regimes abstratos gestados em delírios de direitos humanos que só sabem ver os criminosos como humanos e esquecem das vítimas.
Aliás, é urgente lembrar que a justiça,e não o Judiciário, deve ser imparcial. Muitos que hoje defendem a prisão do assassino de Viviane também defenderam, em contradição mas dentro do espectro ideológico, teses de liberdade para réus que cometeram crimes similares, por exemplo, presos por guardas municipais, como no caso.
Nossa nação necessita de bom senso, do senso comum que se perdeu quando a teoria se tornou mais importante que a realidade, quando os interesses individuais, quando o egoísmo se tornou mais importante que a comunidade.
Precisamos que a nossa Justiça fale mais português e menos “alemão”.
A resposta da impunidade será sempre mais crimes, e sempre piores.
A barbaridade inominável praticada por essa criatura contra a Viviane choca, choca porque ela era juíza, choca porque ela era independente, choca porque ela era educada, assim como o agressor também.
E isso se repete reiteradamente todos os dias contra mulheres anônimas em uma cifra oculta que não chega às delegacias de polícia e aos tribunais, longe do olhar do estado e da sociedade.
Não adianta nota lamentando, não adianta campanha de internet para denunciar quando a denunciante não terá nenhum apoio e o agressor logo estará de novo em seu encalço.
Chega de hipocrisia. Precisamos de respostas reais a problemas reais. A violência contra a mulher é um dos problemas da criminalidade no país, e essa criminalidade só aumenta em razão da impunidade.
Até quando vamos tapar o sol com a peneira e fingir que está tudo bem, que há ordem e progresso?
Não faltam engenheiros de obra pronta a dizer o que a mulher deve ou não fazer, por que não encerrou antes o relacionamento, por que fora vestida com aquela roupa, por que não se comportara, que o episódio todo de violência é lamentável e “medidas devem ser tomadas”.
Tá, tudo bem, mas e o ladrão? Ninguém vai fazer nada com o ladrão?
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.