MATRIX E AS BIG TECHS: VOCÊ ESTÁ SENDO USADO COMO BATERIA
Você pode acreditar que está mudando o mundo, mas está só servindo de bateria para o sistema que realmente o muda.
“O corpo humano gera mais bioeletricidade do que uma bateria de 120 volts e mais de 25 mil BTUs de calor corpóreo. Combinado com uma espécie de fusão, as máquinas encontraram mais energia do que jamais precisariam. Existem campos, Neo, intermináveis campos onde humanos não mais nascem, mas são cultivados… O que é a Matrix? Controle. A Matrix é um sonho gerado por computadores para nos manter sob controle para transformar o ser humano nisso: *mostra uma bateria*”. É assim que o personagem Morpheus se dirige ao herói Neo, o escolhido, no clássico filme Matrix, lançado em 1999.
Presumo que a maioria dos leitores tenha assistido essa obra que, mais de vinte anos depois, ainda suscita debates intermináveis, além de servir de justificativa para teorias conspiratórias de todo tipo.
Mas não é porque os malucos usam o filme para justificar seus delírios que as suas mensagens sejam menos verdadeiras.
A mais comum é a “red pill”, ou pílula vermelha, que é aquela que Neo toma para acordar e ver a realidade, saindo da Matrix. Todo fanático que acha que está certo acredita que tomou essa bendita pílula que parece um Advil. O desenho Southpark tem uma excelente crítica a isso no oitavo episódio de sua décima quinta temporada.
O que nos interessa nesse artigo, contudo, é o uso de pessoas como baterias.
No contexto do filme, houve uma luta entre as máquinas e a humanidade, e nós perdemos. Mas antes disso nós escurecemos o céu para dificultar o acesso das máquinas a uma fonte de energia. O resultado foi que, na falta de outra fonte, as máquinas passaram a usar os seres humanos como pilhas: colocados em casulos, alimentados por tubos e vivendo em um sonho coletivo gerado pelos computadores, os corpos das pessoas serviam de geradores de energia para o sistema.
Há uma interessante discussão do ponto de vista da Física a respeito mostrando que nós somos péssimos até como pilhas, pois gastamos muito mais energia do que geramos, e vai interessar muito se você for um nerd como eu, mas que foge do tema desse artigo (WARD). Também há um debate filosófico de que, mesmo como pilhas lamentáveis, as máquinas não nos destruiriam porque estariam seguindo as leis da robótica propostas por Isaac Asimov, ou apenas obedecendo às próprias leis da guerra e da “nação robótica” e evitando uma cisão intestina entre as máquinas caso viessem a cometer o genocídio dos humanos, com o qual algumas não concordavam (WHEELER).
Debates nerds à parte, para nós interessa a versão de que as pessoas passaram a ser cultivadas pelas máquinas e usadas como pilhas para manter o sistema, enquanto permaneciam presas em um sonho elétrico coletivo de uma vida normal no século XX, incapazes de tomar conhecimento da realidade.
Essa narrativa se encaixa perfeitamente aos usuários das redes sociais como facebook, twitter ou instagram, ou de mensageiros como whatsapp, para citar os mais famosos, que não passam de pilhas.
Embora a película seja de 1999, antes disso tudo, a analogia é perfeita: os usuários estão presos ao sistema criado pelos donos das big techs, interagindo em uma plataforma 100% controlada, consumindo conteúdo que os censores permitem que seja compartilhado (seja pelo bloqueio, seja pelo algoritmo), ao mesmo tempo em que financiam toda essa estrutura dando sua energia, ou tempo de vida, que reflete no aumento de riqueza dos donos dessas redes.
Resumindo, você é uma das centenas de milhões de baterias baratas e descartáveis que mantêm as redes sociais em funcionamento e cada vez maiores.
A situação é curiosa porque as redes sociais, que surgiram no intuito de agradar o consumidor, hoje são maiores do que os usuários e eles que devem se adaptar às suas exigências, e não o contrário.
Os controladores das big techs sabem que as pessoas se tornaram viciadas nas redes a ponto de terem crise de abstinência como se fossem usuários de drogas.
Há um nome para isso: FoMO - Fear of Missing Out, ou “medo de ficar de fora” (GIANTOMASO).
Identificada pela primeira vez por Dan Herman, em 2000, é resumidamente o receio de que outras pessoas tenham acesso a experiências que você não tem, a informações que você está perdendo, enfim, tudo o que você acreditaria que teria se ficasse conectado sempre.
Pode causar angústia, mau humor e até mesmo depressão.
E não vamos tocar ainda na dependência psicológica causada pelos likes e pelos comentários de suas publicações…
Esses vícios colocam os controladores das big techs em uma posição bastante vantajosa diante do usuário, que, ou aceita tudo o que eles empurram, ou ficará de fora da maravilhosa experiência que são as redes sociais.
Tal qual no filme Matrix, os usuários ficam conectados a esse “sonho coletivo”, um mundo virtual totalmente controlado pelas big techs que, de acordo com seus algoritmos e ideologias, fomentam essa ou aquela informação, tiram essa ou aquela pessoa de circulação (apagam da rede), enfim, moldam esse sonho compartilhado como lhes apraz.
O controle é tamanho que além do mundo virtual que todos compartilham, com as informações que eles querem que sejam destaque, também personalizam a experiência de cada um de acordo com seus dados pessoais, sua localização, histórico de navegação, com quem mais interage, enfim, todas informações suas estão ao alcance das big techs.
A situação é tão semelhante ao filme Matrix que há um momento no qual Neo é informado que as máquinas inicialmente criaram uma realidade virtual perfeita para os seres humanos, que no entanto ficaram deprimidos, fazendo-as chegar à conclusão de que o sonho compartilhado precisava de conflitos para entreter as pessoas.
E conflitos são o que mais vemos nas redes, porque é o que “vende”. É uma das razões de ter mais gente em estádios de futebol do que em bibliotecas, e assistindo BBB do que lendo Jordan Peterson, Sêneca ou Aristoteles.
Portanto, não é interessante para as big techs que os conflitos estejam de fora, só que eles sejam devidamente controlados para serem úteis. Então até mesmo a rebeldia é calculada dentro do seu algoritmo como elemento para manter o indivíduo preso nas redes e ser uma pilha mais eficaz para gerar mais energia, digo, lucro.
Sabe aquela sua mania de que precisa ter opinião sobre tudo, apoiar ou xingar os outros porque pensam como você ou de forma diferente, compartilhar notícias que confirmam seus vieses, a impressão de que o que você fala realmente importa e vai mudar o mundo?
É você ficando cada vez mais enredado na rede até que prefira estar nela do que na realidade.
Isso tudo não significa que as redes são más. São ferramentas úteis de troca e difusão de informações, mas não significa que você precise ficar conectado nelas o tempo todo.
Aliás, as redes sociais são só uma pequena parte da internet, mas, infelizmente, para a maioria dos usuários acabam sendo toda ela. Se não está nas redes, não está no foco das pessoas, incapazes de pesquisar sobre assuntos que não cheguem previamente deglutidos pelos tubos de alimentação de seus casulos.
O uso consciente dessas redes permite uma interação importante, mas você não precisa viver colado nelas, divulgar cada pedaço da sua vida numa evasão impudica de privacidade que os antigos reputariam no mínimo nada virtuosa.
Tal qual o dragão ocidental, que cresce tanto quanto é alimentado pelos aldeões que explora, as redes sociais são do tamanho que permitimos que elas tenham.
A boa notícia é que para escapar das big techs você não precisará tomar um genérico de Advil de um indivíduo que usa sobretudo e óculos escuros à noite, aprender golpes de kung fu e combater programas assassinos em uma realidade virtual. É só ter a virtude de autocontrole e reconhecer que você não quer mais ser uma bateria que alimenta um sistema vil.
Como todo vício, não é fácil de se lidar. Se não conseguir resolver sozinho, procure ajuda.
Você não está salvando o mundo conectado o tempo inteiro, muito pelo contrário, você está financiando aqueles que querem, e estão conseguindo, controlá-lo.
Referências:
GIANTOMASO, Isabela. O QUE É FOMO? 'FEAR OF MISSING OUT' REVELA O MEDO DE FICAR POR FORA NAS REDES SOCIAIS. 27.5.2017. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2017/05/o-que-e-fomo-fear-of-missing-out-revela-o-medo-de-ficar-por-fora-nas-redes-sociais.ghtml
WARD, Cassidy. SCIENCE BEHIND THE FICTION: HUMANS AS BATTERIES, AS IN THE MATRIX... PROBABLY NOT GONNA HAPPEN. 27.3.2019. Disponível em: https://www.syfy.com/syfywire/science-behind-the-fiction-humans-as-batteries-as-in-the-matrix-probably-not-gonna-happen
WHEELER, David A. WHY ARE HUMANS USED AS BATTERIES (A POWER SOURCE) IN THE MATRIX?. 08.01.2017. Disponível em: https://dwheeler.com/essays/humans-batteries-matrix.html
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.