Livre imprensa, Democracia e Justiça
Liberdade de imprensa é essencial para qualquer democracia, e cabe ao Judiciário resguardar esse direito no interesse da nação.
“Quando se clama para Deus, pode-se clamar indiferentemente do povoado, ou do deserto. Mas, quando se clama para o poder, é preciso que se não clame do vazio. E é no vazio que hoje em dia gira a imprensa independente. Solitária na sua obstinação e na sua ilusão, ela se esgota impotente, desprezada, quase risível, enquanto de um torno lhe vai crescendo a aluvião do abuso, da força, do sofisma aplaudidos, soberbos, triunfantes."
Rui Barbosa (Obras Completas de Rui Barbosa. V. 27, t. 6, 1900. p. 111)
A liberdade de imprensa é um dos pilares da democracia, embora a própria imprensa às vezes não tenha consciência de que isso é um dever de compromisso com a verdade, e não um direito de assumir partido deste ou daquele lado.
Há um excelente filme a respeito do tema, The Post (2017), que romantiza a luta real entre o governo Richard Nixon e o Washington Post na década de 70 sobre a divulgação ao público de informações que comprovavam que dados foram omitidos dos norte-americanos sobre a guerra do Vietnã.
Embora em um primeiro momento o governo tenha obtido sucesso judicialmente alegando espionagem, a questão vai parar na Suprema Corte, que assegura ao jornal a vitória.
Toda a discussão gira em torno da Primeira Emenda da Carta de Direitos norte-americana, que garante a liberdade de expressão e de imprensa (1).
No caso concreto (New York Times Co. v. United States, 403 U.S) o Justice Hugo Black, em seu voto, destacou (2):
Na Primeira Emenda, os Pais Fundadores deram à imprensa livre a proteção que ela deve ter para cumprir seu papel essencial em nossa democracia. A imprensa deve servir aos governados, não aos que governam. O poder do governo de censurar a imprensa foi abolido para que a imprensa permanecesse sempre livre para censurar o governo. A imprensa foi protegida para que pudesse revelar os segredos do governo e informar o povo. Somente uma imprensa livre e sem restrições pode efetivamente expor as trapaças no governo. E o mais importante entre as responsabilidades de uma imprensa livre é o dever de impedir que qualquer parte do governo engane as pessoas e as envie para terras distantes para morrerem de febres, tiros e granadas estrangeiros. Na minha visão, longe de merecer condenação por suas reportagens corajosas, o New York Times, o Washington Post e outros jornais deveriam ser elogiados por servir ao propósito que os Pais Fundadores viram tão claramente. Ao revelar o funcionamento do governo que levou à guerra do Vietnã, os jornais, de forma nobre, fizeram precisamente aquilo que os Fundadores esperavam e confiavam que fariam.
O direito à livre imprensa é levado muito a sério em qualquer democracia real, e não apenas formal. É por meio dela, imprensa, que o cidadão é informado sobre uma série de acontecimentos, notadamente os que envolvem o interesse da coletividade.
A democracia, em rude síntese, se notabiliza pela participação ampla de todos os cidadãos no rumo do país. Ora, para bem decidir, é preciso bem se informar. Decisões tomadas sem conhecimento conduzem a caminhos trágicos.
É aí que entra o papel da liberdade de imprensa e de expressão. Como disse o magistrado Black, “o poder do governo de censurar a imprensa foi abolido para que a imprensa permanecesse sempre livre para censurar o governo”.
Nesse quesito, há mais de cento e vinte anos já vaticinava Rui Barbosa (3):
“Melhor é prevenir do que remediar, e é prevenindo, muitas vezes, que deste lugar se prestam os melhores serviços ao país. Vem o abuso amostrando a ponta da unha, dá-lhe o jornalista em cima com o bom-senso, ou a lei, e ei-lo que recolhe incontinente a garra. (…) É uma das suas maiores utilidades esta função preventiva da imprensa. Vale talvez mais do que os seus meios de repressão; porque muito mais difícil é remover o malfeito e o corretivo da crítica, em relação a medidas adotadas, tem de lutar com o amor próprio dos homens do poder, empenhado na defesa das suas obras."
A democracia precisa do jornalismo independente vivo. É ele que traz à luz aquilo que alguns preferiam que ficasse nas alcovas, submetendo os fatos ao julgamento do povo, aquele que o brocardo latino ja dizia ser voz de Deus (“vox populi, vox Dei”).
É certo que nem sempre a imprensa se porta com a franqueza que dela se espera, mas é melhor uma que se possa corrigir, do que uma calada ou que funcione como mero porta-voz de um sistema ditatorial, ou pior, totalitário.
A liberdade é um direito natural básico, sem o que a vida em sociedade perde sentido. Não à toa que está prevista na trindade cardeal de direitos da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) (4), que em muito se espelhou na trindade de John Locke (LOCKE, 2001, parágrafo 87, p. 132/133) (5).
No Brasil, inserta no art. 5º da Constituição Federal (6), é considerada um direito fundamental, ou seja, faz parte do núcleo duro e imutável do texto: não pode ser alterado, suprimido ou mitigado de qualquer forma.
A preocupação das democracias em fazer constar esse direito à liberdade de imprensa em seu cerne é, em primeiro lugar, impedir sua supressão ou modificação posterior como forma de censura. O direito está lá e é aquilo, não tem conversa.
Em segundo, permitir que quem quer que tenha esse direito violado possa se socorrer do Judiciário para vê-lo reparado. Ou seja, buscar junto à Justiça o retorno dessa liberdade.
Na divisão tripartite de poderes inspirada no Barão de Montesquieu (7), ao Judiciário cabe a guarda silenciosa das leis. Não é, nem deve ser, protagonista, e é nisso que reside sua força: dizer a última palavra sobre o direito, defendendo o indivíduo da imposição injusta do poder.
Nas palavras de Rui Barbosa, “de nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão.” (8)
Isso é muito bem exemplificado no caso que abre este artigo, no qual um jornal censurado pelo governo encontra na Justiça o amparo necessário para continuar a publicar suas notícias, reconhecendo-se o exercício desse direito de livre expressão um pilar democrático.
A república somente se conjuga com imparcialidade, moralidade e transparência, porque o povo é titular do poder e tem o direito inalienável de saber de que forma seus mandatários o estão exercendo.
Da mesma forma que o sol é remédio para o mofo, a publicidade é a solução para o que se faz nas alcovas com o interesse público.
A legislação brasileira possui mecanismos para exigir a responsabilidade por parte daqueles que abusam do seu direito de liberdade de imprensa, que não é ilimitado. Do direito de resposta, passando pela indenização e até a apuração de crime, há uma ampla gama de respostas que não deixarão impune aquele que viola as leis, mas nenhuma dessas possibilidades inclui a censura.
O Brasil ainda não é a democracia forte que deveria ser, e não por acaso a imprensa divulga constantes descalabros que necessitam de instituições fortes para serem apurados, denunciados e julgados na conformidade da lei.
O risco para a república brasileira já era apontado há mais de cem anos por Rui, relevante intelectual tão pouco considerado em sua terra, refletindo na cumplicidade indigna de quem deveria servir, e não ser servido, pois “os abusos são todos compadres uns dos outros, e vivem da proteção, que mutuamente se prestam." (9)
Nosso país possui uma história crescente de respeito às liberdades, inclusive reconhecidas em uma plêiade de decisões do Judiciário, e se pretendemos uma democracia forte, precisamos continuar a garanti-las.
Notas:
(1) Legal Information Institute. https://www.law.cornell.edu/constitution/first_amendment. Acesso em 15.4.2019, às 22h27.
(2) Justia. US Supreme Court. https://supreme.justia.com/cases/federal/us/403/713/. Acesso em 15.4.2019 às 22h42
(…)In the First Amendment, the Founding Fathers gave the free press the protection it must have to fulfill its essential role in our democracy. The press was to serve the governed, not the governors. The Government's power to censor the press was abolished so that the press would remain forever free to censure the Government. The press was protected so that it could bare the secrets of government and inform the people. Only a free and unrestrained press can effectively expose deception in government. And paramount among the responsibilities of a free press is the duty to prevent any part of the government from deceiving the people and sending them off to distant lands to die of foreign fevers and foreign shot and shell. In my view, far from deserving condemnation for their courageous reporting, the New York Times, the Washington Post, and other newspapers should be commended for serving the purpose that the Founding Fathers saw so clearly. In revealing the workings of government that led to the Vietnam war, the newspapers nobly did precisely that which the Founders hoped and trusted they would do.(…)
(3) Rio de Janeiro, DF. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 25, t. 2, 1898. p. 139
(4) “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão vida, liberdade e a busca da felicidade”. Encyclopaedia Britannica https://www.britannica.com/topic/Declaration-of-Independence#ref338515 acesso em 15.04.2019, às 23h12.
(5) LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil E Outros Escritos. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Ed. Vozes. 3a Ed. Petrópolis. 2001.
(6) Constituição Federal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 15.04.2019, às 23h18. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(7) MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Trad. Rodrigues de Meréje. São Paulo: Cultura Moderna, 1937
(8) Obras Completas de Rui Barbosa. V. 48, t. 2, 1921.
(9) Obras Completas de Rui Barbosa. V. 41, t. 2, 1914. p. 275
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.