JUSTIÇA A FAVOR DO CAOS: QUANDO A FUNÇÃO DE JULGAR SE TORNA MILITANTE
O Judiciário não faz política, nem assistência social. Se esse poder não estiver lá para garantir a estabilidade das leis, quem estará?
De uns anos para cá, o Judiciário tem ganhado espaço na mídia não só em razão de decisões relevantes, em alguns casos inusitadas, mas, principalmente, por ter se tornado uma instância revisora do Legislativo, do Executivo e de tudo o mais que acontece na sociedade.
E isso está errado?
Depende. A função principal do Judiciário enquanto um dos Poderes da República é julgar conforme a lei, limitando os excessos e impedindo os abusos. Em algumas situações, que são mais exceção do que regra, ele pode declarar determinada lei inconstitucional, isso é, contrária ao texto da Constituição Federal, e extirpá-la do sistema total ou parcialmente, por exemplo.
Resumindo: juízes julgam conforme a lei de forma a garantir a manutenção, primeiro, da ordem constitucional inaugurada em 1988, vontade do povo, e, segundo, da estabilidade social.
Isso significa que juízes são repetidores da lei?
Bom, esse é o sonho de todo ditador e seu grupelho: que o magistrado se resuma a repetidor daquilo que o parlamento decide. Era o sonho da Revolução Francesa e de Napoleão, juiz “bouche de lei” (boca da lei). Sonho de Hitler e Stálin, Maduro e Fidel Castro.
Ora, o magistrado tem liberdade para interpretar a lei, existindo até parâmetros próprios na chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, como a necessidade de analisar o interesse social.
E essa liberdade é o próprio fundamento da democracia, pois juízes que não podem interpretar ou tenham medo de exercer sua função interessam apenas a regimes ditatoriais e totalitários, corruptos e corrompidos. A esse respeito já ensinava Ruy Barbosa há mais de cem anos, ao citar um julgado britânico:
“É essencial, em todos os tribunais, que os juízes, instituídos para administrar justiça, possam exercê-la sob a proteção da lei, independente e livremente, sem contemplação, nem temor. Não é em proteção e benefício dos juízes dolosos e corrompidos que se estabeleceu esta norma jurídica: é em proveito do público, interessado em que os juízes se sintam em liberdade de exercer as suas funções com desassombro e sem receio de conseqüências. Como poderia um juiz desempenhar-se assim do seu cargo, vendo-se cada dia e a cada hora sob a ameaça de processos, em resultado das suas sentenças?” Scoff v. Stanfield, L. R. 3 Exch. 223. ANSON: The law and custom of the Constitution (1892). v. II. p. 454. (BARBOSA. p. 280/281).
Contudo, o limite da interpretação da lei é a própria lei. Ou seja, você pode interpretar, mas não criar algo totalmente novo ou contra àquilo que existe.
Isso significa que juízes são conservadores?
Na verdade, sequer se deveria cogitar a discussão sobre conservadorismo ou progressismo quanto ao Judiciário. Fazê-lo é inserir uma carga político-ideológica, talvez até partidária, onde ela não deveria existir.
Também não há que se falar em “justiça dos ricos”, porque os magistrados devem valer-se das leis gestadas por um congresso votado pelo povo, formado em sua maioria por pessoas pobres. Se as leis são criadas inadequadamente, a responsabilidade recai também sobre a escolha de quem irá representar o eleitor.
Juízes não devem ser agentes de mudança social simplesmente porque o juiz é executor daquilo que foi gestado no passado, notadamente a Constituição Federal e as leis. É incompatível com a função do juiz “mudar” a sociedade, a não ser no aspecto mais claro e evidente de acabar com a impunidade e passar a demandar o cumprimento dos deveres pelos indivíduos que se beneficiam de sua própria maldade e torpeza.
Ao agir como assistente social o magistrado deixa de ser julgador e se torna parte, pendendo para qualquer dos lados da balança ao atuar concretamente no exercício do cargo para a consecução de sua ideologia, o que é não só incompatível, como vulnera a sociedade, que troca um juiz por um militante de qualquer tendência.
A figura do juiz assistente social é uma perversão absoluta da função de julgar. Magistrado tendo que implorar vaga para internar menor infrator, tendo que construir unidade prisional junto com o Conselho da Comunidade, cuidando das necessidades materiais de presos em flagrante em audiência de custódia. Isso e muito mais é o retrato de um país no qual o Judiciário abandonou sua função principal para se tornar uma entidade beneficente, um gestor de presídios e abrigos, um elaborador de projetos sociais.
Pensemos num jogo de futebol. Todo mundo sabe que não se pode pegar a bola com a mão e sair correndo. No jogo de amarelinha, pisou na linha você está fora. No vôlei, ninguém cogita em fazer embaixadinha.
São as regras do jogo. O árbitro não é mais ou menos conservador porque marca uma falta, dá um cartão vermelho ou amarelo. Ele segue as regras previamente postas que todos, gize-se, todos os jogadores sabem quais são.
Em uma comparação bem grosseira, da mesma forma que o árbitro “apita” a partida toda dentro dos estritos limites das regras já criadas, sem inovar, embora tenha liberdade de interpretar, o juiz julga sempre utilizando normas já criadas.
Quando o Judiciário se propõe a ser a pedra de toque ou o paradigma do certo e do errado em uma sociedade é porque algo vai mal, especialmente quando essas decisões “criam” leis novas e são uma surpresa para quem vai ser afetado por elas.
A ideia de existirem leis prévias, votadas por representantes eleitos pelo povo democraticamente, é garantir a todos uma transparência social, sem sobressaltos. Inclusive, no Direito Penal ninguém pode ser punido por algo sem uma lei anterior que defina essa conduta como crime, é um princípio secular.
A partir do momento em que essas regras passam a ser flexibilizadas ou absolutamente ignoradas pelo Judiciário, especialmente por seus tribunais superiores que são responsáveis pela “padronização” dos julgamentos, a vida em sociedade se torna absolutamente instável.
Imagine que você esteja andando em uma rua de mão única, com limite de velocidade de 40 km/h. Subitamente, enquanto você trafega, aparecem alguns agentes do estado e trocam a placa para 30 km/h, e você é multado. Dez metros adiante, surgem outros agentes do estado que trocam a placa, invertendo a mão da via, você passa a estar na contramão e é multado. É possível viver assim? É um cenário muito mais digno das aventuras de Alice no País das Maravilhas, com suas rainhas obcecadas por decapitação e seus chapeleiros loucos.
Infelizmente, um Judiciário que se recusa a valer-se das leis e passa a criar as normas de acordo com a conveniência de cada caso torna qualquer lugar um pesadelo como o de Alice.
Uma sociedade só pode prosperar na ordem e no comprometimento dos seus membros. Assim, o respeito aos contratos, à palavra dada, aos compromissos e costumes não são “conservadorismo tolo”, mas o substrato da comunidade.
A partir do momento em que os contratos, o costume e a palavra empenhada passam a não valer nada, deixa de existir o requisito essencial de confiança, que é um dos principais pilares da vida gregária.
Porque confiávamos uns nos outros é que fomos capazes de dividir funções nas tribos primitivas, essencial que era que cada membro fizesse sua parte.
A confiança é tão essencial que a traição é tida como um dos maiores pecados sociais. Que o digam Judas e Brutus, até hoje lembrados por sua infâmia.
No direito existe a boa-fé objetiva, que é a justa expectativa de que em determinadas situações a pessoa agirá em conformidade com aquilo que se comprometeu ou era esperado em tais casos.
Há uma anedota, usada por Maurício de Sousa em um de seus quadrinhos, de um jovem interiorano, que troca a letra “L” pela “R”, que, ao fazer um pacto com o diabo, comprometendo-se a entregar sua “arma” dali a trinta anos em troca de riquezas. Quando o tinhoso vem cobrar a dívida, o caipira lhe entrega um revólver, dizendo que aquela era sua “arma”, livrando-se, hipoteticamente, da danação eterna.
Na boa-fé objetiva isso será inadmissível, porque a intenção clara do diabo é na alma, e era evidente que a pessoa sabia disso. Tanto é verdade que o aspecto cômico dessa anedota vem da inesperada “esperteza” do protagonista que enganou o cramulhão.
Ora, se é surpresa pro leitor, então é um comportamento que foge ao que se considerava adequado naquele caso, e é justamente esse tipo de conduta que é socialmente nociva.
O Judiciário, porém, tem contribuído significativamente para desestabilizar as relações sociais ao admitir debater todo o tipo de ajuste e contratação, revendo as cláusulas e acertos para além da vontade dos contratantes, e chamando isso de interpretação social. Contratos bancários, de financiamento de veículos, DPVAT, até combinação entre vizinhos, tudo vai para as raias da Justiça.
Já ninguém se contenta em perder, ou pior, não se contenta em não tentar ganhar um pouquinho mais. O Judiciário é a roleta do cassino que às vezes pode garantir alguma coisa a mais nessa relação, uma diminuição de juros, um aumento de indenização, enfim, nada escapa de uma reanálise pelo Judiciário, do juiz singular ao Supremo Tribunal Federal.
Cem milhões de processos são apenas o sintoma dessa doença social que é a falta de ética no compromisso com a palavra, falada ou escrita.
Há nisso um evidente solapar da confiança, porque ninguém sabe como vai ser a decisão do Judiciário. Toda semana um assunto é pautado pela mídia na expectativa de como serão julgados certos temas. Há “especialistas especializados” em fazer projeções sobre esse ou aquele ministro do Supremo. Os julgamentos são acompanhados com ansiedade, porque dali podem sair mudanças significativas para o país, e ninguém sabe o que esperar.
Pois bem, se ninguém sabe o que esperar, não anda bem o Judiciário em sua função de pacificação social. Na verdade, faz o contrário.
Pondo-se a julgar e a rever seus julgamentos a todo tempo, a costurar incompatíveis visões legais ou deliberadamente criando normas, sua conduta semeia o caos e torna inviável qualquer construção duradoura.
Um indivíduo mais ou menos inteligente antes de empreender uma atividade faz as contas do custo e do benefício. Até bandidos o fazem. Só vale a pena fazer algo se a recompensa disso for boa e mais provável que o fracasso. Para que tal aconteça é preciso, pelo menos por parte da gente de bem, estabilidade. Ninguém constrói sua casa sobre a areia. O empresário tem que saber quais tributos irá pagar, quais os riscos de sua atividade, como será a taxa de juros, quais as hipóteses de indenização a possíveis consumidores e outros elementos.
Aquele que vai abrir uma lanchonete para vender hambúrgueres, por exemplo, faz um estudo da região, como é o fluxo de pessoas, quem são aqueles que trabalham perto, qual o nível econômico de quem frequenta a região e assim por diante. Imagine que depois de investir um milhão de reais nessa hamburgueria, por decreto, a vizinhança seja ocupada apenas por veganos. Quebra ou não quebra?
Só quem lucra na indeterminação e no caos são os especuladores, ou, em outras palavras, os escroques, os jogadores, aqueles que apostam e não possuem pudores em manipular as cartas.
Um país do qual ninguém sabe o que esperar, cujas regras mudam a qualquer tempo, nunca atrairá investidores sérios, nunca terá empreendedores responsáveis, que medem os riscos de qualquer atividade em cenários estáveis. Somente quem está disposto a apostar alto, que não se importa com a comunidade, que não tem o menor senso de empatia e responsabilidade social, que nutre uma psicopatia e acalenta um mal secreto, é que vinga em ambientes desestruturados. São os parasitas, os exploradores do alheio, os lobbystas que manipulam a tessitura das burocracias que sempre saem ganhando, ainda que o povo inteiro perca com isso.
Um empreendedor sério nunca será um parasita, porque ele vive na mesma comunidade na qual oferece seus produtos e serviços. Para ele, quanto mais próspera uma sociedade, melhor, diferentemente dos escroques, para quem uma sociedade instável, insegura, movida pelos desejos de uma oligarquia, é sempre mais rentável. Que o digam os espoliados países de terceiro mundo e subdesenvolvidos em suas relações com as grandes corporações.
Assim, parece bastante evidente que o Judiciário não deve se propor a ser o agente de transformação social, não deve ser legislador, nem gestor de políticas públicas. O seu papel é claro, e tanto maior será sua importância quanto mais se mantiver adstrito àquilo que é sua função primordial: julgar, e com isso acabar com a impunidade, restaurar o que foi partido e impedir os abusos.
Quando o Judiciário se propõe a criar leis e a administrar a coisa pública, é sinal de que a República está ameaçada e refém. Retomando a grosseira comparação, magistrados são os árbitros, a eles não cabe jogar em qualquer dos lados, fazer gol ou inventar novas regras. Sua função é garantir que a partida inteira aconteça dentro do esperado, punindo os que saiam do previamente estipulado. Fora disso perde sua razão de ser e se desmoraliza. Saem perdendo o árbitro, os dois times e as torcidas.
É tentadora a proposta de mudar o mundo à base de canetadas, mas é preciso resistir. Os juízes são os responsáveis pela estabilidade do país, em garantir que as leis sejam cumpridas. A função do magistrado não é só garantir direitos, mas cobrar deveres. É o Poder procurado quando tudo mais falhou, é a última voz contra os abusos do mais forte e o que nos separa da vingança privada. Depois dele não há ninguém, só revoluções, caos e totalitarismos.
Atribui-se à Rui Barbosa a frase que diz que “a pior ditadura é a do Poder Judiciário, contra ela não há a quem recorrer”. Alguém tem dúvida?
Bibliografia:
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. XXIII. Tomo III. 1896. Posse de Direitos Pessoais. O Júri e a Independência da Magistratura; Ministério da Educação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa; Rio de Janeiro, 1976, p. 227-306.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.