ENCONTRARÁS DRAGÕES
É preciso, antes de tudo, admitir que odiar é um prazer. Se alguém pudesse transformar o ódio em substância e vendê-lo, teria a mais viciante, mais intoxicante poção que a humanidade já viu.
“Todas as guerras começam muito antes do primeiro tiro ser disparado e continuam muito depois da última bala ter feito seu trabalho”
There be dragons, Roland Joffé
O ódio não nasce pronto, começa sempre como uma semente.
Quem a vende, essa semente, não raro promete fáceis frutos doces. Mas, assim como quem planta cicuta não irá colher erva doce, quem planta o ódio jamais colherá paz.
É preciso, antes de tudo, admitir que odiar é um prazer. Se alguém pudesse transformar o ódio em substância e vendê-lo, teria a mais viciante, mais intoxicante poção que a humanidade já viu.
Você pode ser viciado em sexo, em álcool, em comida… mas seu corpo pára em algum momento, ele entrega os pontos. Com o ódio é diferente, porque não existe nenhum limite: quanto mais você odeia, mais vai odiar.
Tanto melhor se esse ódio vier bem embalado, dourado e coberto de fitas.
Quantos nomes a pura violência, o ódio mais mesquinho já recebeu? Liberdade, democracia, preservação dos costumes, resistência ao racismo, pureza da raça, repressão aos párias.
Só é preciso um motivo para desprezar o outro, para justificar cada ato de violência, cada palavra grotesca, cada desejo vil. Quando dão uma razão, e nem precisa ser uma muito boa, tudo bem matar, esquartejar, arrastar o corpo do outro pela rua. Tudo bem acabar com uma vida humana, destruir seu patrimônio, vilipendiar sua dignidade, seu corpo. Na real, o inimigo nem mesmo é gente.
Melhor ainda se junto com a razão vierem um uniforme, um hino, palavras de ordem, talvez uma marcha e um logotipo para colocar nas redes sociais da internet. Todos devem saber que eu odeio pelos motivos certos e que somos fortes em números.
Faz parte do trabalho de destruir os maus, porque “há a violência que liberta e a violência que escraviza, e há a violência que é moral e a violência que é imoral” (Benito Mussolini).
Porque o outro é mau. O outro é a encarnação de tudo o que está errado, e eu, eu sou a espada flamejante da justiça social, da moral e dos bons costumes, da ideologia que eu abracei e que é a certa.
Quão mais facilmente se perdoa um homicida, um estuprador, um ladrão, um corrupto, do que aquele que pensa diferente, que diverge de nossas ideias. O criminoso que compartilha dos nossos ideais é mais fácil de “perdoar”, e, caso se converta, ganha até espaço de fala.
Nesse mundo politicamente correto de extremistas ultra-sensíveis não há crime maior do que divergir. A pena mínima é ser suprimido como pessoa e humilhado.
E é isso que vejo nas ruas do nosso país: pessoas que dizem defender a liberdade, a igualdade, a justiça, agredindo e depredando. Nem se diga do discurso inflamado nas redes sociais: se espremesse, jorraria sangue. E não importa o lado, e não importa a bandeira, ou falta dela, e não importa a figurinha na rede social, porque são várias: a intolerância é a mesma.
Quando noto que o argumento a um pensamento contrário é acertar a cabeça de quem discorda com um porrete, tenho certeza de que o país perdeu sua bússola moral.
“Uma revolução não se faz com beijos e abraços”, cansei de ler. Normalmente quem diz isso é quem se imagina segurando a coronha da arma ao discursar para a vítima ajoelhada. Que conhecedores da tragédia humana são esses revolucionários quando é do outro o sangue e as lágrimas. Afinal, e com isso os heróis do século XXI precisam concordar, “somente o sangue move as rodas da história” (Benito Mussolini).
Mas a quais revoluções eles se referem? Ao banho de sangue francês ou ao russo? Ao Congo dominado e esquartejado de Leopoldo II? Ao sofrimento chinês ou ao vietnamita? À fome dos poloneses ou dos venezuelanos?
O que justifica em um estado de direito agredir, depredar, incendiar e espalhar o medo? Já somos uma democracia. Se as pessoas não votam do jeito que você gosta, bom, isso é uma democracia. A divergência faz parte.
Uma revolução tem por objetivo trocar um regime por outro. Qual seria? Ou toda vez que uma parte da população discordar da outra teremos violência até que o mais forte imponha sua vontade? Isso parece o oposto de liberdade.
Aliás, sinto informar que as maiores revoluções vieram com beijos e abraços.
Sidarta Gautama, o Buda, espalhou uma mensagem de paz que dura até hoje. Mohandas Karamchand Gandhi obteve suas vitórias guiando o povo por meio de uma resistência e desobediência civil pacíficas, mesmo diante da violência britânica. Martin Luther King combateu a desigualdade racial também pela desobediência civil pacífica, opondo-se ao ódio racista que vicejava nos EUA de seu tempo.
Tanto Gandhi quanto Luther King foram mortos por quem discordava de suas ideias (alguma semelhança ao ódio ideológico?), mas foram vitoriosos nas boas sementes que plantaram. E seus opositores?
A maior revolução veio, porém, de um carpinteiro da Judeia, que dividiu a história em antes e depois d’Ele. E a mensagem sempre foi amor e tolerância.
Quando seus algozes o vilipendiaram e o humilharam, em vez de odiá-los, simplesmente pediu que Deus os perdoasse. A vítima que perdoa os seus carrascos é o ápice de uma revolução e da vitória da humanidade, como também mostra Ariano Suassuna em seu Auto da Compadecida.
Fica a pergunta: quem espalha a violência espera mesmo ser ouvido? Ou seu objetivo é só espalhar o medo e a repressão? Ninguém muda pelo medo, só se esconde.
A estratégia de perseguir o outro nunca funcionou, que o diga a história dos cristãos e judeus.
Eu estou seguro de que nenhuma das pessoas que balança hoje as bandeirinhas de anti-fascismo ou de pró-tal-político concordará com essas palavras. Talvez até aumentem o seu ódio. Estão seguras em sua insegurança a ponto de qualquer abalo suscitar a vontade de reprimir, suprimir, torturar e matar quem não é automaticamente a favor de sua cartilha.
Tudo, claro, por um mundo de paz e justiça.
Mas quem sabe? Quem sabe não pensarão para além das bandeiras prometidas, dos memes, dos logotipos, das marchas e dos uniformes, esses sim verdadeiramente fascistas, no conceito romano do feixe de gravetos inquebrantável em sua brutalidade defunta.
É preciso saber que plantando ódio só colheremos medo, ignorância, violência e mais ódio. É evidente e lógico à toda prova.
Plantar amor, tolerância, respeito, pode não funcionar imediatamente, mas é uma chance, a única, eu diria, se queremos ter esperança de um mundo virtuoso, no qual podemos olhar nos olhos uns dos outros.
Na vida encontraremos dragões por toda a jornada. O desafio não é só vencê-los, mas não se tornar também um deles.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.