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É PRECISO RIR PARA EXORCIZAR O DIABO

Eduardo Perez
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É PRECISO RIR PARA EXORCIZAR O DIABO

As notícias ruins, que estimulam a tristeza por si só, são potencializadas e capitalizadas por grupos e pessoas a serviço do desespero. Não caia nessa.



Já disse Suassuna no Auto da Compadecida: “quem gosta de tristeza é o diabo”. O personagem João Grilo, em sua esperteza adquirida na miséria, já percebera: “tudo o que se diz ele enrasca a gente,dizendo que é falta de respeito”.

É verdade. O Diabo dança nas regras, se compraz com a limitação, coma falta de perspectiva, com a prisão intelectual e emocional das pessoas. Quando João Grilo evoca a Compadecida com um verso engraçado, o Diabo afirma que ele faltara com respeito à Mãe de Jesus, sem que ela o tivesse autorizado a falar em seu nome ou até mesmo sem perguntar sobre o que achara do convite do bardo. O Diabo se sente habilitado a falar pelos outros quando está nos seus planos:

JOÃO GRILO
Falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se zangou com o verso que eu recitei?
A COMPADECIDA
Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo.
JOÃO GRILO
É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito.
A COMPADECIDA
É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.

Outro escritor, o lusitano Gil Vicente, em seu Auto da Barca do Inferno dá espaço na barca do Anjo ao Parvo, que, inocente, ao ser convidado para a barca do Diabo o esconjura com rimas humorísticas:



Furta cebolas! Hiu! Hiu!

Excomungado nas erguejas!

Burrela,cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu!

A mulher que te fugiu

per'a Ilha da Madeira!

Cornudo atá mangueira,

toma o pão que te caiu!



A barca do Anjo é simples e nela sobem apenas os que vêm de mãos vazias. Já a barca do Diabo é ampla e nela cabem os que vieram carregados de bens (e pecados): o Fidalgo, o Onzeneiro (agiota), o Sapateiro, o Frade, a Alcoviteira, o Corregedor (juiz corrupto), o Procurador (advogado venal)...

No Auto da Compadecida, Suassuna nos lembra, pela boca da Compadecida, que o Diabo é apegado às formas exteriores, enquanto Gil Vicente, em seu Auto da Barca do Inferno, destaca como aqueles que foram apegados às honras terrenas, à vaidade, aos bens materiais, são incapazes de caber no barco do Anjo a caminho do Paraíso.

Falando parece fácil, mas é duro que o diabo conta com um fã-clube danado de grande, alguns até que dizem ( e às vezes acreditam) fazer a obra de Deus. Gente que se apraz em odiar, que tem preconceito, de cuja boca só saem regras, para quem tudo é falta de respeito, ofensa, e seus “inimigos” devem ser mais que combatidos: devem ser obliterados, suprimidos, cancelados.

Uma gente que está sempre vestida para a guerra porque acredita agir em nome de Deus, da justiça social, da moral, do povo, da tradição, dos oprimidos, das minorias, da revolução, embora não tenha procuração de ninguém além da própria megalomania e acaba que faz é o trabalho do Encourado.

Seja um texto santo, seja uma cartilha ideológica, o objetivo é destilar sua frustração sobre os outros, dizer como cada um deve agir e ser. Tantos recém convertidos, seja à fé, seja à ideologia política, sinalizam suas virtudes e se empenham em apontar os erros alheios. Aliás, não só em apontar, mas em perseguir seu irmão, em atormentá-lo, em ofendê-lo, porque para quem se considera paladino de uma causa, quem diverge é um risco, é um perigo, e não pode existir, pouco importa se há vínculo de parentesco ou amizade.

Tanta gente apontando o dedo, subindo em palanques feitos de corpos, escrevendo panfletos com o sangue de gente viva. Nenhum desses aí está preocupado com o próximo, essas vidas só servem para justificar a defesa de suas crenças e ideologias. Ás vezes até mesmo disfarçam seu ódio com uma aparência de humor.

Penso que todos perdemos alguém que amávamos durante essa pandemia. Eu mesmo vou sentir a ausência do riso e da alegria constante da minha tia, que foi cedo demais. A saudade que sinto, contudo, não é nunca o desespero que regozija ao Encourado, a fé, a compaixão, o bom humor, permanecem, porque há um significado na vida de cada um e a procura desse significado, como nos ensina Viktor Frankl em seu livro Em Busca do Sentido, dá forças para suportar tudo. E ele sabia bem do que estava falando, sobrevivente que fora dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, os mais letais da máquina de genocídio nazista.

Vale lembrar uma das citações da obra:

"Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixam de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas".


Ontem, quatro de maio, faleceu Paulo Gustavo, que era marido, pai, filho e irmão de alguém antes de ser uma figura pública que espalhou risos pelo país, um riso que vinha cheio de uma alegria primordial desprovida de preconceito, de ódio, de lacração, de moralismo, de reacionarismo, de politicamente correto.

A todo o momento, a cada dia, recebemos a oportunidade de novas lições, e para aprendê-las basta abrir uma brecha em nas ideologias, nas certezas e na “armadura de retidão”.

A maior dessas lições é que Deus é amor, compaixão e alegria. Se tem ódio, exclusão e tristeza é coisa do diabo.

Nem no momento mais obscuro e tétrico da humanidade os maus puderam tirar de suas vítimas a liberdade de serem boas. Você também tem essa liberdade.