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É errado comer suas crianças - parte 2

Eduardo Perez
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É errado comer suas crianças - parte 2

A prática do aborto no Brasil é tratada sem a seriedade necessária e sem a análise de elementos sociais e do próprio vínculo da realidade. A sua liberação impensada tende, ao contrário do que defendem alguns, a manter a mulher na submissão. Texto de agosto de 2018.

Continuando o tema do primeiro artigo que pode ser lido aqui, falávamos sobre o acesso de métodos contraceptivos às mulheres de baixa renda.


Como em tudo o mais no Brasil, trata-se a consequência, mas nunca a causa. É como pegar uma criança com sarampo, passar maquiagem em seu rosto e dizer que está curada, quando só se fez ocultar os sintomas de uma doença subjacente que conduzirá à morte.


Sob a alegação de se ampliar o direito das mulheres, se faz é, comodamente, mantê-las em um estágio de submissão e subserviência ao status quo, porque nenhuma informação lhes é fornecida.


Se a mulher não usa método contraceptivo por motivo religioso, pela mesma razão não abortará. Se não usa por desconhecimento ou falta de acesso na sua região, pelo mesmo motivo não será viável o aborto da forma proposta. Se o marido ou o companheiro se recusa a usar preservativo ou método contraceptivo, muito mais força tem a mulher que diz “não” àquela que se submete.


Afinal, a independência da mulher é ela ter liberdade de escolha real, não a retórica de uma luta que, na verdade, a prejudica.


A tese de “meu corpo, minhas regras” deveria valer inclusive, e especialmente, para esse momento de se negar a ter relação com quem não se dispõe a se proteger, não só pela gravidez, mas pelo respeito ao próprio corpo no que tange à transmissão de doenças.


Ou alguém consegue defender a lógica de que é melhor a mulher submeter-se à vontade sexual do homem e depois, porque o corpo é dela, abortar? Não parece algo racional pela dupla violência a que a pessoa será alvo.


O argumento de que a criminalização do aborto nega o prazer feminino e a coloca em disparidade com o homem ignora séculos de debates filosóficos e da própria construção do estado organizado.


Salvo interpretação equivocada, entende-se que o homem habitualmente faz sexo desprotegido e que, por não engravidar, poderia aproveitar desse prazer e deixar as consequências com a mulher. Para que se equilibre esse suposto deleite, então a mulher poderá fazer sexo desprotegido sem risco, pois poderá suprimir a consequência com a prática abortiva.


Em suma, advoga-se a irresponsabilidade de ambos os lados, ao invés de se exigir a responsabilidade.


Como uma inefável ilha da fantasia, crê-se emum estado erigido apenas em direitos, olvidando que em sua gênese, antes da garantia dos direitos, existiu um pacto de dever mútuo de não-agressão e colaboração.


Quando se inverte a lógica e o estado organizado se limita a garantir direitos, sem a observância prévia de deveres, cria-se a sensação de impunidade e de egoísmo, como se à sociedade competisse a satisfação dos prazeres individuais, como se a comunidade fosse obrigada a manter os gostos de uma parcela, que é, de fato, o que vem ocorrendo no Brasil, não obstante a paciência do contribuinte já dê mostras de ruir.


A gravidez indesejada pode ser fruto de algum acidente, como no caso do emblemático episódio das pílulas anticoncepcionais de farinha Microvlar, do laboratório Schering. Mas, em grande parte, é fruto da irresponsabilidade e ausência de freios e cuidados de ambos praticantes da relação sexual consentida, quando são pessoas instruídas.


Sob um véu de modernidade e ampliação de direitos individuais, a proposta seria basicamente a de sexo desprotegido sem consequência, após décadas de propaganda sobre a necessidade de uso de preservativos para conter as doenças venéreas, especialmente a AIDS.


Note-se, não se sugere a ausência de sexo, mas a prática responsável das relações, da forma que quiser ser feita, com quantos parceiros se pretenda ter.


Vale aqui também apontar o equívoco da lógica do “meu corpo, minhas regras”, que enfrenta obstáculo fático intransponível: um feto em gestação não é o corpo da mulher, é outro corpo, ainda que dependente. É uma vida diferente, para a qual a mulher contribuiu com 23 pares de cromossomos, e o homem com os outros 23. Ele apenas depende do corpo feminino para se desenvolver, e ainda não há tecnologia que permita que isso aconteça fora do útero.


Isso é evidente e deve ser levado em conta também nos debates.


Como mencionado, o lema “meu corpo, minhas regras” serve igualmente para recordar que não existem só direitos, mas o dever de preservar a própria integridade física. A consequência da relação sexual desprotegida é conhecida por todos, ou quase todos, salvo os inimputáveis.


Ninguém joga uma pedra para cima esperando que ela vire um pássaro.


A tese de que é sonegado o prazer à mulher com a vedação à prática do aborto incide justamente no estímulo à irresponsabilidade, como a dizer que o sexo desprotegido que venha a gerar crianças é certo, basta você abortar depois. Olvida que, para os fins contraceptivos, o aborto não se presta e há meios bem menos onerosos e desproporcionais para atingir o mesmo resultado.


A ideologia nefelibata de prazer a todo custo converte a sociedade em um espaço exclusivo de lazer irresponsável, logo, fadada ao fracasso, tal como Roma em seu último e mais decadente período quando em contraposição ao seu primeiro momento de uma comunidade frugal e austera, esta sim capaz de levar o estandarte da águia para terras longínquas.


Não apenas nessa discussão, mas em boa parte do pensamento que diz proteger os direitos individuais, há um ranço inegável que trata o outro como vítima e lhe sonega a liberdade para que sirva de alimento ao Moloch da bandeira ideológica.


Como no famoso livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, o estado absoluto não só permite, como estimula e fornece, toda sorte de prazeres, tais quais sexo livre, drogas, viagens e bens de consumo, desde que o indivíduo não questione e nem pense, e se mantenha em sua posição social previamente estabelecida.


Por curiosidade, especificamente sobre esse livro, o comportamento promíscuo é estimulado, pois “(…) é uma prática bem condenável sair assim com um homem só repetidamente”. O uso de anticoncepcionais, pelo Treinamento Malthusiano, ordinário, pois a mulher “(…)na cintura tinha uma cartucheira de imitação de marroquim verde com o suprimento regular de anticoncepcionais(…)”.


E mesmo sob os efeitos da droga “soma”, distribuída pelo estado, a prática intensiva dos exercícios malthusianos era recordada:


No entanto, embora estivesse encerrada no bocal, e a despeito daquele segundo grama de soma, Lenina não se esqueceu de tomar todas as precauções anticoncepcionais prescritas pelos regulamentos. Anos de hipnopedia intensiva e, dos doze aos dezessete, exercícios malthusianos três vezes por semana, tinham tornado a prática desses cuidados quase tão automática como o pestanejar”. 


Havia até mesmo um Centro de Abortos, no caso de algum tratamento haver falhado ou a mulher ter sido “irresponsável”. Tal centro era de conhecimento comum, sem qualquer tabu, inclusive recebendo iluminação especial duas vezes por semana para chamar mais atenção ao prédio.


Veja-se esse trecho da fala de Linda, mãe do Selvagem, sobre sua gravidez indesejada e a memória da civilização:


Se bem que não foi por minha culpa, juro; porque até hoje não sei como foi isso, visto que fiz todos os exercícios malthusianos; você sabe, contando: um, dois, três, quatro.  Sempre, juro; o que não impede que, apesar de tudo, tenha acontecido; e naturalmente não havia aqui nada parecido com um Centro de Abortos. A propósito, ele continua em Chelsea? - perguntou. Lenina fez com a cabeça um sinal afirmativo. - E sempre iluminado com projetores nas terças e sextas? - Lenina fez novamente que sim. - Aquela linda torre de vidro rosa! - A pobre  Linda ergueu o rosto e, de olhos cerrados, contemplou extasiada a imagem brilhante da recordação. - E o Tâmisa, à noite... - murmurou”. 


A leitura desse clássico sobre uma terrível sociedade distópica na qual a humanidade se resume a um gado bem alimentado, mas prisioneiro, é essencial.


Com o sexo livre e estimulado, inclusive brincadeiras eróticas entre as crianças (olá, pedofilia!) sem consequências, abolida a imagem de pais e mães, com uma posição social e trabalho predeterminados e sempre vivendo de forma coletiva ou entupido de drogas, o habitante desse Admirável Mundo Novo era feliz, apenas porque lhe era vedado questionar o que era a liberdade.


Os que o faziam eram banidos para o equivalente aos gulags soviéticos, a fim de não contaminar a sociedade perfeita.


Guardadas as proporções, há similitude dessa pantomima com esse debate superficial acerca do aborto. Em nenhum momento se cogita que as mulheres pobres mereçam o acesso ao conhecimento para que possam se libertar, não apenas do jugo do sexo inseguro, mas da dominação de dogmas, sejam eles religiosos ou políticos.


São, pelo contrário, tratadas como objeto num debate, sem voz e sem vez. Dirão que as mulheres pobres são vítimas da criminalização do aborto, pois recorrem a métodos caseiros ou a lugares obscuros e, colocando em risco à própria vida, também arriscam sua liberdade em virtude de uma ação penal.


Daí surge mais um slogan, para unir-se ao “meu corpo, minhas regras”: “nem morta, nem presa”.


Talvez ciente dos métodos contraceptivos fornecidos gratuitamente, e gize-se o gratuitamente, pelo SUS não precisasse colocar em risco sua integridade física, nem sua liberdade, muito menos sua dignidade submetendo-se aos desejos de parceiros egoístas, esses sim verdadeiros machistas na acepção própria do termo.


Ademais, se o problema todo é o desconhecimento da população pobre sobre tais métodos, é de se imaginar então que a solução proposta da prática de aborto seja provisória, até que a informação seja eficaz. Isso ou o argumento é retórico.


Não é demais lembrar que esse tipo de entendimento incide frontalmente a uma previsão da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que diz:


Art. 3º  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.


Ora, se ninguém pode se escusar do cumprimento da lei alegando seu desconhecimento, a tese jurídica de que a falta de informação conduz à prática criminosa não deveria se sustentar por ser frontalmente contrária ao ordenamento jurídico. A vicejar entendimento desse jaez haverá uma miríade de defesas de criminosos alegando desconhecimento da ilicitude de sua conduta.


O que importa, porém, como ressaltou a dra. Daniela, é tratar da consequência, nunca da causa. O verdadeiro tabu não é o aborto, muito maior que ele é a estratificação social e intelectual a que certas pessoas são relegadas para justificar o injustificável aparato de defesa desses vulneráveis que, por lucrativos que são, nunca deixarão de sê-lo pela mão de seus protetores.


Talvez a diferença para a obra de Huxley é que, além de escravos da ignorância mantidos à margem do conhecimento, também a essas pessoas é sonegada a qualidade material de vida, e muito, como dito, pela perpetuação de seu estado ignaro, que tanto apreciam os intelectuais, figuras públicas e congêneres.


Nessa mesma linha de raciocínio, e valendo-se do principio da proporcionalidade, antes de se questionar se a criminalização do aborto é suficiente para diminuir sua prática, é preciso perguntar se a mulher, ou o homem, não poderia ter tomado medidas preventivas a essa situação.


Veja-se o excerto do voto condutor do ministro Barroso: 


O princípio da proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio ou justa medida. Em uma palavra, sua justiça. Conforme entendimento que se tornou clássico pelo mundo afora, a proporcionalidade divide-se em três subprincípios: (i) o da adequação, que identifica a idoneidade da medida para atingir o fim visado; (ii) a necessidade, que expressa a vedação do excesso; e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na análise do custo-benefício da providência pretendida, para se determinar se o que se ganha é mais valioso do que aquilo que se perde.


Seguem algumas perguntas: era possível tomar medidas de precaução que evitassem a gravidez? Essas medidas estavam ao alcance dos que praticaram a relação sexual? Essas medidas contraceptivas são menos danosas para a mulher do que a interrupção de uma gestação? 


Se a resposta for “sim” às perguntas, parece bastante óbvio que a gravidez não decorreu de um fortuito, mas de descaso com cuidados, e que seria muito menos danoso estimular e facilitar o acesso aos métodos contraceptivos do que facilitar o aborto que, no fim, é muito mais violento e arriscado para a mulher.


Há ainda inúmeras outras reflexões: o feto, enquanto vida em gestação, é propriedade da mulher? Há participação do genitor na escolha do destino dessa gestação? Somente a mulher pode decidir interromper a gravidez, ainda que a responsabilidade no caso de nascimento com vida seja de ambos os genitores? Quantos abortos serão permitidos por paciente, ou serão ilimitados? Sendo possível descobrir o sexo do bebê a partir da oitava semana, autorizar-se-à abortos eugênicos porque o objetivo era um bebê de sexo diverso daquele que foi gestado? E características físicas específicas, autorizarão o aborto?


Absurdo? Infelizmente, quando se trata de ser humano e seus desejos mesquinhos, é muito melhor ter uma visão de Maquiavel e Hobbes à de Rousseau e sua Terra do Nunca.


Segundo um estudo do Banco Mundial, em matéria de 2011, mais de um milhão e meio de bebês do sexo feminino são abortados de forma seletiva anualmente, e outro meio milhão de meninas até cinco anos morrem vítima de discriminação em suas casas, em razão do tratamento diferente dado a seus irmãos do sexo masculino.


Há um termo aplicado ao caso: feticídio feminino, que, na China, em 2008, passava de um milhão. Mas em diversos outros lugares do mundo existe essa seletividade, que pode também voltar-se para o sexo masculino, ou atributos específicos do bebê, conforme a ciência evolui.  


Enquanto muito se fala da dignidade pelo direito ao aborto, pouco se pensa nos efeitos nefastos que daí podem advir. Se a dignidade, no conceito kantiano, é tratar o ser humano como um fim em si mesmo, como justificar que uma vida em gestação seja tratada como objeto ou apêndice do corpo?


E volta-se ao debate inicial de se diferenciar fatos de interpretação sobre os fatos.


Por que escolher o limite para cessar a gestação até o primeiro trimestre? É uma escolha baseada em interpretação. É fato que há ainda muito a se desenvolver, e mais dois terços de um período gestacional até que ele se conclua naturalmente, embora exista histórico de sobrevivência de bebê nascido no quinto mês de gravidez.


Contudo, a seguir o ritmo normal e esperado na quase totalidade dos casos, aquele feto de três meses se desenvolverá até o nascimento.


A interpretação de que se pode cessar o desenvolvimento de uma vida sem motivo significativo também é reduzir a dignidade humana a zero, limitando-nos a uma mera massa de estímulos químicos, o sonho do Admirável Mundo Novo.


O primeiro país a legalizar o aborto, em 1920, foi a extinta União Soviética, em que pese a mudança legislativa posterior em 1936, tornando-o ilegal até 1955. Segundo dados das Nações Unidas de 2010, proporcionalmente a Rússia é o país com maior número de aborto, 1.2 milhões, em 2009, embora, no mesmo período, a China tenha apresentado uma quantidade maior, 13 milhões, mas para uma população de 1.3 bilhão de habitantes.


Não se pode negar que vulgarizar a prática do aborto é também aviltar a dignidade humana, pelas razões mencionadas.


Por outro lado, e outro argumento a ser considerado, é que a mulher que busca o aborto está, e isso foi bem destacado no voto condutor do ministro Barroso, desesperada. Há toda uma história de agonia, abandono e aflição. Ausência de apoio emocional e/ou material por parte do companheiro, ou mero genitor, e/ou da família.


Da mesma forma que a vida em gestação não é objeto, a mulher que a gesta não o é. Ao contrário de repreensão e violência, de anátema, precisa de acolhimento e amparo. A dureza dos olhos de quem recrimina o aborto deveria ser substituída pela compaixão de se compreender a angústia pela qual aquela mulher está passando.


Aliás, por se submeter a essa angústia, e ainda bem, é possível divisar no ser humano mais do que meros estímulos químicos e vida baseada em carbono, num raciocínio circular que nos orienta parcimônia em substituição à ânsia de uma solução simplista e imediatista incapaz de absorver todas as nuances e consequências dessa escolha.


É, por sinal, um dos princípios do direito ambiental, o da precaução, que indica que, se há dúvida, deve-se manter conservador, evitando soluções ou admissão de medidas arrojadas cujas consequências são imprevisíveis e, quiçá, irreparáveis.


Como diziam nossos avós, só não há solução para a morte, embora seja paradoxal falar que nada é mais irreparável que a perda de uma vida num país em que sessenta mil mortos por ano não causam mais do que uma sobrancelha levantada nas autoridades de cúpula.


Em conclusão, esse artigo tem por objetivo muito mais suscitar dúvidas do que expor posicionamentos ou impor ideias.


O debate sobre o aborto não deveria se exaurir em dogmas ou fundamentos religiosos e políticos. Não há uma solução pronta, nem uma resposta imediata, embora seja sedutor imaginar um mundo que se mova como um tabuleiro de banco imobiliário.


Olhar os outros países é interessante, mas não passa de falácia se forem adotadas apenas as medidas que favorecem as ideologias que defendemos. Novamente, não existe uma forma de separar a prática de um país da realidade onde ela ocorre, assim como não se deve inserir a golpes de malho realidades alienígenas no Brasil, forçando uma compatibilidade inexistente.


É preciso acima de tudo lembrar que esse debate envolve vidas, direitos individuais de quem está vivo e de quem espera por nascer, assim como da coletividade e os valores que ela defende como válidos para a sociedade e, salvo por imposição tirânica, devem ser usualmente mudados por essa mesma sociedade.


Eu, como tio da Cecília, tenho acompanhado de longe esse momento da minha irmã e me sinto no dever de rogar um debate menos açodado e uma solução menos prêt-a-porter a um assunto tão complexo e que envolve tantos interesses.

 Para quem quiser ler um pouco mais a respeito:



Boletim de Jurisprudência internacional sobre aborto do STF

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaBoletim/anexo/BJI3ABORTO.pdf


JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DO ABORTO
A PARTIR DO HC 124.306/RJ 

https://estudosinstitucionais.com/REI/article/download/182/172

Os Abortos do STF

https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/416933697/os-abortos-do-stf