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AMAR AO PRÓXIMO OU COMO NÃO NOS TORNARMOS BARATAS

Eduardo Perez
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AMAR AO PRÓXIMO OU COMO NÃO NOS TORNARMOS BARATAS

Há um abismo entre vivermos juntos e apenas dividirmos o mesmo ambiente. Os grandes feitos da humanidade foram possíveis porque vivemos juntos, vimos e fomos vistos, ouvimos e fomos ouvidos. Por outro lado, onde a humanidade viveu apenas ocupando um espaço nada foi criado além do medo e da desconfiança.

“Nascemos e morremos sós”. É assim que alguns pedantes, que se consideram uma criatura intermediária entre o sábio da montanha e Bukowski, refletem sua visão bastante cínica e egoísta do mundo, e com isso justificam seus amargores, descontando uma dor de cotovelo pontual na existência humana como um todo.



Embora seja certo que a experiência pessoal do nascimento e da morte sejam exclusivas de quem passa por elas, assim como todas as outras, ninguém precisa estar só.


John Donne (1572-1631) abordou a questão da existência em sua poesia, afastando essa afetação niilista sobre a solidão humana, ao sentenciar:


Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.


Como comunidade perdemos com a morte de cada pessoa. E mais, perdemos quando cada pessoa morre em vida, é impedida ou desiste de explorar o seu potencial. Hannah Arendt ensinava que uma das características da ação humana é a sua imprevisibilidade, pois uma vez realizada trará efeitos muito além daqueles imaginados pelo agente. Quando somos, portanto, subtraídos de alguém, perdemos a miríade de possibilidades que essa pessoa representaria.


Essa crença de que a solidão humana é real e palpável e vivemos isolados é tão insustentável que, se fôssemos de fato ilhas, sequer poderíamos exprimi-lo, já que, entre outras maravilhas da mente, o alfabeto e a arte só se tornaram possíveis graças às comunidades.


Mas esse cinismo não existe sem um fundo de verdade. Há um abismo entre vivermos juntos e apenas dividirmos o mesmo ambiente. Os grandes feitos da humanidade foram possíveis porque vivemos juntos, vimos e fomos vistos, ouvimos e fomos ouvidos. Por outro lado, onde a humanidade viveu apenas ocupando um espaço nada foi criado além do medo e da desconfiança.


Julio Cortazar (1914-1984) narra em um conto a história da tia que tinha medo de cair de costas e, portanto, andava lentamente pela casa, com muito cuidado, forçando a família a sempre cuidar para que não houvessem obstáculos no piso. Ao ser questionada sobre seu medo, respondeu que se caísse de costas não tornaria a levantar, sendo redarguida que se isso acontecesse trinta e cinco membros da família iriam acudi-la, assertiva recebida por ela com descrença.


Escreve Cortazar:


“Dias depois [da conversa com a tia] meu irmão mais velho me chamou à noite até a cozinha e me mostrou uma barata caída de costas embaixo da pia. Sem uma palavra assistimos à sua inútil e longa luta por erguer-se, enquanto outras baratas, vencendo a intimidação da luz, circulavam pelo chão rente à que jazia em posição de decúbito dorsal. Fomos para a cama com uma profunda melancolia, e por esta ou aquela razão ninguém tornou a interrogar a tia(…)”


Das interpretações possíveis desse conto a que sempre me pareceu mais terrível foi a de que, apesar de ter trinta e cinco parentes que diziam estarem prontos a acudi-la, a tia em seu íntimo sabia que, se caísse de costas, ficaria só. Ela não acreditava na existência da família, mas tão só da divisão comum do espaço de convivência.


Essa me parece a verdadeira solidão humana: a certeza de que ninguém te estenderá a mão para ajudá-lo a se erguer, assim como o sentimento de que você também não o fará por outro. É o que vemos em filmes apocalípticos como Mad Max ou de mundos dominados por zumbis, no qual as pessoas colocam seu interesse pessoal em primeiro lugar e estão sempre desconfiadas do outro. O herói, portanto, é aquele que demonstra empatia e se dispõe a correr riscos pelo próximo.


Não seria de espantar se na sociedade de espetáculo e mendicância de likes em redes sociais a quase totalidade das pessoas se sentisse mais ou menos como a tia do conto de Cortázar. Um mundo no qual as pessoas vêem alguém agonizando e, em vez de ajudar, sacam seus celulares e passam a filmar a cena, às vezes até rindo. É mais importante pensar nas vantagens de mostrar os vídeos depois, o outro como um mero adereço de palco, um evento, do que vê-lo como um ser senciente que precisa de ajuda.


Foi exatamente o que aconteceu com a jovem Kitty Genovese, em 1964, em Nova York. Atacada por um criminoso à noite na rua, durante meia hora ela foi estuprada e esfaqueada enquanto gritava por socorro perante trinta e oito vizinhos que a tudo assistiram e nada fizeram. O criminoso ainda voltou dez minutos depois e terminou de matá-la. Estudos posteriores diriam que o número de vizinhos era “apenas” metade e que um deles chamou a polícia, embora ninguém tenha se disposto a ajudá-la.


A isso se deu o nome de Efeito do Espectador (bystander effect), ou síndrome de Genovese, no qual quanto maior o número de pessoas presentes a uma tragédia, menor chance de alguém intervir, já que há uma sensação de difusão de responsabilidade e que outro fará algo.


Quem nunca ouviu a expressão: “alguém tem que fazer alguma coisa” ou “alguém vai fazer algo”? É quando se transfere a responsabilidade social de agir para uma abstração de que uma situação de ajuda, sendo importante, mas não tão importante a ponto de desviá-lo de seu caminho, será resolvida por alguém. Via de regra, o todo poderoso Estado.


Em tempos de rede social esse efeito é ainda mais terrível, porque à inação e mera condição de espectador soma-se a ajuda inócua de curtir ou compartilhar pedidos de ajuda com a sensação de que algo foi feito, embora nada tenha sido de fato realizado. Entre coquetéis, vinhos, cervejas e churrascos, um like já é mais que suficiente para ajudar aquela família com fome, não?


Estudos indicaram que a chance de intervenção em um evento, logo a mitigação do Efeito do Espectador, aumentam quando há um compromisso entre a vítima e a pessoa. Por exemplo, quando alguém pede para a pessoa olhar os pertences dela enquanto ela vai a algum lugar, ela se sente responsável e tenderá a intervir em caso de furto.


É quando o outro deixa de ser um adereço de palco para nós e passa a ser alguém.


A conduta de desconfiança e indiferença existe onde o outro não existe, ou seja, quando as demais pessoas não são consideradas por mim como pessoas, mas apenas naquilo que podem representar, sejam benefícios, sejam obstáculos. Quando não há senso de comunidade, mas apenas o ajuntamento de pessoas, não há união, apenas a conveniência que pode esfacelar a qualquer momento.


Quem já assistiu aos documentários animais sabe como os leões se organizam para atacar, por exemplo, uma manada de búfalos. Os búfalos estão em um número muito maior, são extremamente fortes, mas mesmo assim eles fogem, é cada um por si e azar de quem for pego. De vez em quando eles reagem, mas essas reações esporádicas não modificam a dinâmica predador-presa.


Claro, seria demais esperar que os animais emulassem a comunidade política humana, mas não é novidade, por sua vez, que os humanos ajam como animais, acreditando, contudo, que estão sendo humanos. Quando se fecham em seus casulos e se fixam apenas em seus interesses, que se resumem à satisfação de seus apetites e paixões, as pessoas formam apenas uma massa amorfa e sem objetivos, muito diferente de um povo.


Essa massa é a verdadeira solidão. É essa massa de apetites, angústia, inveja, impotência, raiva, que serve de matéria-prima para grupos extremistas, com ideais exclusivistas (raciais, sexuais, nacionais), e podem evoluir para regimes ditatoriais ou totalitários. Corações e mentes vazias estão sempre prontas a serem preenchidas por bandeiras, cartilhas ideológicas, palavras de ordem, hinos… Essas pessoas à deriva na vida encontram nesses movimentos três grandes vantagens: primeiro, um significado para suas vidas e a sensação de serem especiais; segundo, alguém para culpar e em quem descontar suas frustrações, isto é, todos que não pertencem ao movimento; e, terceiro, abdicar do terrível peso de ser livre e responsável por suas escolhas.


Movimentos dessa natureza não se formam onde existe um senso de comunidade, onde eu vejo o outro e o outro me vê para além das minhas crenças, da minha condição econômica, da minha sexualidade, da cor da minha pele, da minha nacionalidade.


Há um filme de 1997 chamado “Será que ele é?”, cuja trama gira em torno de saber se o protagonista, o professor de uma escola no interior dos EUA, é homossexual, com toda a carga de reprovabilidade que adviria em razão do preconceito. Spoiler aqui: no final, quando os alunos e a comunidade estão reunidos no auditório do colégio para a concorrida cerimônia do melhor professor do ano e ouvem do diretor um discurso homofóbico de como a homossexualidade é uma perversão contagiosa, um a um dos alunos, assim como os membros da comunidade, passam a dizer que se o professor era “gay”, então eles também eram, apoiando a pessoa que conheciam e cujo caráter admiravam, no que a sexualidade em nada influenciava.


Esse é o verdadeiro senso de comunidade: saber que o outro é alguém como você e que não existe “eu” sem “nós”, coisa que as religiões e filosofias mais antigas sempre ensinaram. Você não constrói um país sem isso. Aliás, você não forma nem uma associação de bairro sem esse afeto mútuo. Por isso o ditado “dividir para conquistar” funciona tão bem: quando somos fragmentados conforme nossos interesses particulares, por elementos que não significam nada e nem são indicativos de caráter, como sexo, sexualidade, cor da pele, religião, criamos um vínculo artificial de fácil manipulação por qualquer canalha.


Para não dizer que esse senso de pertencimento é roteiro de filme, lembro aqui alguns eventos da vida real que só foram possíveis graças a isso. Os exemplos são infindáveis, mas vamos a uns poucos apenas para ilustrar.


Em maio de 1940 centenas de milhares de soldados ingleses e franceses estavam acuados pelas forças nazistas no porto francês de Dunquerque. Mesmo diante da improbabilidade de sucesso, a Inglaterra organizou a Operação Dínamo para tentar resgatá-los, conseguindo salvar cerca de 338 mil soldados, quando a melhor expectativa era no máximo de 30 mil.


E o que isso tem a ver com o senso de comunidade? É porque o chamado “milagre de Dunquerque” só foi possível graças à participação de centenas de pequenas embarcações de civis que, atendendo ao chamado, não apenas cederam suas naves como se colocaram em risco para resgatar seus irmãos. Não eram soldados, eram civis que mais do que saber, sentiam a importância de sua missão de salvamento.


Nem todos se lembram de Janusz Korczak, pseudônimo de Henryk Goldszmit, médico pediatra, pedagogo excepcional e autor prolífico que amava as crianças e defendia os seus direitos, e cujo orfanato em Varsóvia, que fundara em 1912, foi elogiado por Jean Piaget.


Com a invasão nazista, seu orfanato fora transferido para o gueto de Varsóvia em 1940. Mesmo senso liberado, Korczak optou por ficar no gueto e cuidar de suas crianças.


A última entrada do seu diário foi a de 4 de agosto de 1942. No dia 5 ou 6 o gueto fora cercado pela temível força de Hitler, as tropas da SS, juntamente com as polícias ucranianas e letãs para a etapa final de exterminação da população do gueto de Varsóvia. Korczak teve mais uma oportunidade de sair, mas recusou pela segunda vez, preferindo ficar ao lado das suas crianças e dos funcionários do orfanato.


No dia da deportação para o campo de concentração de Treblinka, Korczak pediu que suas crianças colocassem as melhores roupas e pegassem seu brinquedo favorito. Korczak, dezenas de educadores e 192 crianças marcharam juntos até o comboio que os levaria a Treblinka. Reconhecido por um soldado, que ofereceu a terceira oportunidade para que escapasse, Korczak negou-a. Ele, seus educadores e suas crianças foram mortos juntos em Treblinka.


Somente o amor ao próximo é capaz de tamanha façanha. Uma vida dedicada ao outro como se fosse a si mesmo até o fim.


É também em um campo de concentração, mas de Auschtwitz, que se passa nossa terceira história. Quando em julho de 1941 houve uma fuga, os nazistas colocaram todos os prisioneiros em fila e escolheram dez aleatoriamente para serem fechados em uma sala sem luz e sem água onde morreriam de fome para que servissem de exemplo, dentre eles Franciszek Gajowniczek (1901-1995), um sargento do exército integrante da resistência judaica, um judeu, portanto.


Gajowniczek começou a chorar e a dizer que jamais voltaria a ver sua mulher e seus filhos. Foi quando da fila de prisioneiros saiu o padre católico Maximiliano Maria Kolbe. Kolbe era um franciscano que, quando solto, não só abrigava judeus como também publicava opiniões contra o nazismo, motivos que o levaram à Auschwitz.


As testemunhas do ato, incluindo o próprio sargento salvo, contam como toda a cena transcorrera de forma “milagrosa”: Kolbe saíra da fila sem que nenhum soldado atirasse nele, encarou o comandante nazista e falou, em alemão, que tinha um pedido a fazer, queria morrer no lugar de Gajowniczek. Os nazistas não ouviam e nem conversavam com prisioneiros, era uma estratégia para desumanizá-los. Mesmo assim o comandante nazista o ouviu e, irritado, ameaçou colocar Kolbe junto aos demais prisioneiros sem retirar o sargento. Parou um instante, refletiu, deu um pontapé em Gajowniczek e mandou voltar para a fila, colocando inacreditavelmente Kolbe no lugar.


Na prisão, Kolbe seguiu confortando os outros prisioneiros e rezando até o último dia. Em 14 de agosto de 1941, duas semanas sem água, luz e comida, Kolbe, mesmo com seu histórico de saúde frágil, e mais três prisioneiros continuavam vivos. Os nazistas então administraram-lhes uma injeção letal e queimaram seus corpos.


Kolbe foi canonizado São Maximiliano Maria Kolbe em 10 de outubro de 1982.


Mais uma história da II Guerra Mundial, evento histórico que tem um manancial infinito de acontecimentos e de lições que deveríamos apreender para nunca mais repetirmos.


Lembremos das forças nazistas sitiando Leningrado, atual São Petersburgo, em setembro de 1941. Um cerco que durou 900 dias. Era lá que estava, no Instituto da Indústria das Plantas, a maior coleção de sementes do mundo. Mas não era somente uma “coleção” como uma coleção de selos, era um cofre que armazenava uma diversidade imensurável de sementes para garantir a sobrevivência da humanidade pela agricultura.


Seu criador foi o geneticista e geógrafo russo, Nikolai Vavilov, que realmente escutou os camponeses e a importância da semeadura, visitando todos os continentes e coletando sementes e aprendizados no que dizia ser “uma missão para a humanidade”. Infelizmente, Vavilov foi perseguido pelo comunismo soviético de Stálin ao defender a genética, “uma pseudociência burguesa”, e o homem que trabalhou no sonho de alimentar o mundo morreu de fome no Gulag.


Treze de seus discípulos, porém, estavam em Leningrado quando do cerco nazista cuidando desse repositório de sementes. Com a fome iminente da população da cidade e o risco de invasão nazista, o que esses botânicos fizeram? Se trancaram no cofre com as sementes e literalmente morreram de fome para protegê-las das ameaças.


Quando, acabado o cerco, o exército vermelho ingressou na instalação, descobriram os cadáveres dos botânicos protegendo as sementes, sem que tenham tocado em nenhuma delas. Morreram porque acreditavam na importância de sua missão para mitigar a fome no mundo, que tinham visto de perto, e sabendo que a guerra um dia acabaria e aquele depósito seria importante.


Graças ao sacrifício deles, calcula-se que 80% dos alimentos cultivados na URSS nos anos que se seguiram vieram das sementes lá guardadas.


Preocupar-se com o outro não é um atributo exclusivo dos santos ou escolhidos, está ao alcance de todos, que o diga William Kamkwamba, cuja história é contada no filme O Menino que Descobriu o Vento (2019), quando aos quatorze anos, mesmo sem ter como frequentar a escola e ridicularizado por alguns, ajudou sua comunidade em Malawi, na África, ao utilizar a energia eólica.


A última história é a de Dashrath Manjhi (1929 - 2007), que vivia na diminuta aldeia de Gahlour, na Índia, com sua esposa. Quando ela sofreu um acidente grave, não houve tempo de levá-la ao médico e veio a óbito, já que a cidade mais próxima onde ficava o hospital distava 90 km da pequena vila.


Diante de sua perda o que fez Manjhi? Decidiu que nenhum outro morador de sua aldeia deveria sofrer a mesma dor e, em 1960, com um formão, um martelo e uma pá, começou a abrir caminho em uma montanha que há séculos obstruía a passagem da vila.


Mesmo diante das piadas e das ofensas, considerado um lunático, Manjhi não desistiu de sua obra, e durante vinte e dois anos de trabalho intenso construiu um caminho de 110 metros de comprimento e 9 metros de largura que encurtou a viagem entre sua aldeia e o distrito mais próximo de 55km para 15 km. Tendo morrido em 2007, recebeu um funeral de estado pelo governo de Bihar, na Índia.


O que todas essas histórias têm em comum é o amor ao outro, àquele real, que está ao alcance.


Hannah Arendt também ensinava que não existe “humanidade” enquanto conceito abstrato, mas apenas as pessoas reais, concretas, com quem dividimos o mundo. De fato, as maiores atrocidades da história tiveram por fundamento ideologias e a desumanização do outro. A coletivização é uma das mais terríveis formas de desumanização. Dividir as pessoas por profissão, por sexo, por sexualidade, por cor da pele ou por religião, por exemplo, é uma forma de desumanizar a si e ao outro. Nenhuma dessas características define a personalidade de alguém e sua conduta, mas quando esses grupos são criados gera-se um “nós x eles”, sem que se note o perigo maior de se dividir a trincheira com um crápula só porque possuem a mesma religião ou cor de pele.


Korczak ficou até ao fim ao lado de seus educadores e das crianças, independentemente de suas origens, sexo ou qualquer outro atributo, e São Maximiliano não definiu sua ação pre-selecionando um católico, recebendo por seu ato o reconhecimento de cristãos, de judeus e de todo ser humano com um mínimo de caráter. O amor é universal.


Você não constrói um país, portanto, fragmentando-o. A fragmentação interessa só a alguns poucos que querem manter as coisas como estão. Aos leões é interessante que os búfalos continuem como uma massa, todos juntos, mas cada um cuidando do seu próprio interesse. Essa massa humana é a matéria-prima de regimes ditatoriais e totalitários, seja ao apoiá-los, seja pela ausência de união para resistir-lhes.


Meia dúzia de indivíduos dominam tão bem essa massa quanto um pastor e seu cão fazem com um rebanho de ovelhas.


As ideologias, por sua vez, são incapazes de criar uma união real, porque elas coletivizam a humanidade. Quando você participa de uma coletivização você vale tanto para o grupo quanto a formiga isolada ao formigueiro. Você é totalmente descartável e sua miséria é sua, mas seu ganho “é nosso”. Seria o fim de toda ideologia se as pessoas vissem e fossem vistas como indivíduos com a consciência de deveres e direitos, do outro e de si.


Esse, infelizmente, é o cenário do Brasil, um país no qual o senso de comunidade foi destruído e esse vácuo permanece, quando muito preenchido por ideologias envolvendo sexo, cor de pele, religião, estranhas bandeiras, palavras de ordem, sacralização das leis, das instituições e das autoridades, tudo à custa do indivíduo, que ou participa da massa e arrisca a sorte torcendo para não ser aquele o dia que vai ser comido pelo leão, ou se isola e se torna perseguido não só pelos leões, mas também pela massa.


Enquanto o Brasil não se tornar um país no qual as pessoas se olham no rosto e vêem o outro, e não os próprios interesses, continuará a ser o país do jeitinho, da corrupção, da violência, da exploração sexual, da malandragem. E ninguém vai te ajudar, todos continuarão olhando enquanto Genovese é estuprada e morta, uns por curiosidade, outros pela sensação de “ainda bem que não é comigo”, e alguns por sadismo. Só o mais rematado canalha trai um companheiro, mas qualquer um pode se aproveitar de um estranho, notadamente quando esses estranho não é visto como uma pessoa, mas como fonte de vantagens ou de risco.


Gajowniczek, que viveu até 1995, conta como ao ver São Maximiliano se aproximar do comandante nazista e oferecer sua própria vida pela dele, ficou incrédulo. Disse, anos depois: "Fiquei atordoado e mal conseguia entender o que estava acontecendo. A imensidade disso tudo: eu, condenado, devia viver porque outra pessoa, voluntariamente, oferecia sua vida por mim. Um estranho. Era um sonho ou realidade?”.


O que o sargento não entendera era que para Kolbe ele não era um estranho, era um irmão. Não por causa da sua religião, não porque pertenciam ao mesmo país, ao mesmo sexo, eram da mesma cor, ou dividiam a mesma ideologia, mas porque eram ambos vítimas da injustiça de uma ideologia doente, ambos tratados como coisas, ambos dignos de amor recíproco.


Enquanto o brasileiro não absorver isso, vai continuar a comemorar os atos injustos que prejudicam “à outra facção” que tanto odeia e merece todo o mal do mundo, a se insurgir contra as punições justas dos líderes de sua própria facção, que são perfeitos, e a pouco se importar com o navio que afunda, desde que possa arranjar um espaço para si em um dos botes salva vidas.


O espectador indiferente, ou até feliz, à desgraça do seu vizinho que é arrastado em plena rua por ser quem é deveria, se não por virtude, ao menos por egoísmo, suscitar a ideia de que o próximo pode ser ele.


Urge, com uma urgência raramente vista no mundo, que não nos tornemos baratas, que não passemos à margem da desgraça alheia. Nosso sangue é quente mesmo que não haja sol, mesmo na escura cela de Auschwitz, e se as baratas são especialistas em sobrevivência e podem até resistir a um cataclismo nuclear, esse é o tipo de existência que só a elas, baratas, interessa.


Para ler mais:

https://virtualia.blogs.sapo.pt/22486.html


https://observador.pt/2017/10/24/a-historia-dos-13-botanicos-que-durante-o-cerco-de-leninegrado-morreram-a-fome-rodeados-por-alimentos/


https://observatorio3setor.org.br/noticias/ele-poderia-ser-salvo-mas-preferiu-ir-com-suas-criancas-para-a-morte/


https://br.rbth.com/arte/2014/06/16/o_homem_que_morreu_para_salvar_a_maior_colecao_de_sementes_do_mundo_26075


https://www.bbc.com/portuguese/geral-58198542