ABUSO DE AUTORIDADE: ENTRE A LEI E A JUSTIÇA
Rosa Parks (1913-2005) ensinou que, diante da injustiça, a justiça não deve recuar, nem responder com violência. Como ver a nova Lei de Abuso de Autoridade?
É comum que as pessoas confundam a lei com a justiça, entendendo que se a lei foi cumprida, a justiça foi feita. Um exemplo disso é o caso de um criminoso que, após cometer um ato hediondo e cumprir poucos anos na cadeia, é solto, contando com defensores que dirão que a justiça foi feita e ninguém pode reclamar, especialmente a vítima.
Ou a crença cega da elite política e econômica que, criando lei atrás de lei, se manterá no poder, por mais imoralidade e corrupção que cometam.
Será?
Em um famoso trecho(ou perícope) da Bíblia (João 7:53 até João 8:1-11), fariseus levam até Jesus uma mulher acusada de adultério, dizem a ele que, pela lei, ela deve ser apedrejada até a morte, indagando-o se concordava com isso.
Diz Cristo aqui a famosa frase: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.
Durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, houve uma forte repressão aos estrangeiros e descendentes de alemães, japoneses e italianos. Por exemplo, proibição de usar nome estrangeiro até mesmo em colônias e de ensinar seu idioma a menores de 14 anos em escolas rurais, cuja matéria deveria ser sempre ministrada em português e dirigida por português nato (Decreto-Lei n. 406/1938).
Nessa época o Palestra Itália teve que mudar o nome para Palmeiras, para não manter nenhuma referência italiana.
Os abolicionistas brasileiros, como o juiz Antônio Bento, lutaram contra o regime legal escravocrata até o advento da Lei Áurea de 1888.
A escravidão já esteve na lei, portanto, assim como a vedação à mulher poder votar ou atuar como empresária sem um homem responsável junto.
O que têm em comum a intenção de apedrejar a adúltera, a proibição de estrangeiros falarem seu idioma, o regime escravocrata e a submissão das mulheres? Todos são atos injustos, mas com previsão legal.
Mas nesse texto quero ser mais claro, porque o Brasil está completamente imerso na impunidade, sendo a Lei de Abuso de Autoridade (LAA), cujos vetos presidenciais foram derrubados recentemente pelo Congresso Nacional, a cereja desse indigesto bolo.
Advirto às almas mais sensíveis que o exemplo que usarei agora não tem por objetivo comparar a situação dos juízes, promotores e policiais com o segregacionismo norte-americano de meados do século passado, extremamente nefasto. A intenção é demonstrar que a lei e a moralidade não andam sempre juntas por intermédio de um caso edificante de coragem e união.
Dito isso, vamos ao Alabama segregacionista dos EUA do século passado. Nele havia um lugar chamado Montgomery, cujo Código da Cidade determinava que os transportes públicos fossem segregados racialmente entre pessoas de tez branca e de tez negra.
Essa divisão dos ônibus acontecia com a colocação de uma linha que separava a parte da frente, onde se situavam os brancos, da de trás, onde ficavam os negros, com número de acomodações igual.
No dia 1 de dezembro de 1955, cansada de um dia estafante de trabalho em uma loja, Rosa Parks subiu no ônibus e tomou seu assento na parte de trás.
Ao longo da viagem o motorista, vendo que muitos passageiros de cor branca estavam de pé no corredor, parou o ônibus e moveu a linha divisória mais para trás, pedindo que quatro passageiros afro-americanos saíssem de seus lugares.
Embora o Código da Cidade não desse tal autoridade para que o motorista mudasse a linha divisória e demandasse que os passageiros cedessem seu lugar a quem quer que fosse, essa era uma prática comum. E caso o passageiro de tez negra protestasse, o motorista poderia recusar serviço e chamar a polícia.
Três dos passageiros se levantaram. Rosa Parks, não. Ao ser indagada pelo motorista: “por que você não se levanta?”, ela respondeu: “eu não penso que eu deveria me levantar”.
A polícia foi chamada e ela foi presa e liberada na mesma noite mediante fiança. Seu julgamento foi no dia 5 de dezembro. Após ouvida, foi considerada culpada e condenada a uma multa de US$ 10,00, além de custas de US$ 4,00.
A atitude de Rosa Parks uniu a comunidade afro-americana cansada da segregação, que, resumindo, resultou no movimento de Boicote de Ônibus de Montgomery. Mais de 40 mil afro-americanos que viviam na cidade chegaram a ir a pé para os seus trabalhos para que não usassem os coletivos, que logo passaram a ficar estacionados diante da ausência de passageiros.
Todas as tentativas para acabar com o boicote foram em vão, inclusive a violência aplicada contra os manifestantes, depredação de suas igrejas e da casa de Martin Luther King Jr.
Após 381 dias desde o seu início, o movimento acabou após a Suprema Corte norte-americana declarar inconstitucional a segregação em transportes públicos (Browder v Gayle).
Diante das afirmações de que Rosa Parks não teria se levantado aquele dia por estar cansada, a ativista de direitos civis foi clara:
“Pessoas sempre dizem que eu não dei meu assento porque eu estava cansada, mas isso não é verdade. Eu não estava fisicamente cansada… Não, meu único cansaço era o cansaço de me rebaixar”.
Dentre as inúmeras lições de Parks, foco em uma, e me dirijo especialmente aos juízes atingidos pela Lei de Abuso de Autoridade, facilmente alcunhada de Estatuto da Impunidade, bem como aos promotores de justiça e policiais: não devemos nos levantar diante de uma ordem desprovida de justiça.
A LAA é uma lei não só inconstitucional, ou seja, que viola o cerne do sistema legal brasileiro, como também é injusta, pois acaba por retaliar juízes, promotores e policiais pelo combate à corrupção, ao mesmo tempo em que garante a impunidade dos corruptos, das organizações criminosas e até dos menores bandidos.
E a norma atinge não só a esfera criminal, mas coloca em risco o pagamento de dívidas em ações judiciais, considerando que praticamente criminalizaram o uso do sistema de bloqueio online de contas bancárias.
Temos uma lei que facilita a vida de criminosos e caloteiros e garante que a justiça nunca mais seja feita no país, tornando obsoleto e desnecessário o Judiciário.
A quem o cidadão recorrerá?
É nesses momentos da história que devemos decidir.
Será que, ao pedido do motorista, deveria Parks ter cedido seu lugar, exigindo apenas a igualdade do número de assentos para brancos e negros? Deveria se submeter à lei injusta, esperando que em algum momento os detentores do poder político e econômico vissem que separar as pessoas pela cor de pele é algo asqueroso e abjeto?
Parece que não. Sem violência, sem descumprir de fato a lei, ela apenas se recusou a levantar. E todos aqueles que um dia foram obrigados se levantar, ou cujos filhos, esposas, maridos, mães, pais, amigos também foram obrigados alguma vez a se levantar, se uniram a ela.
Uma lei que já nasceu injusta pela segregação era interpretada ainda mais injustamente por motoristas que mudavam a linha segregatória do ônibus ao seu bel prazer, apenas para oprimir os que, no fundo do transporte e da história, já eram oprimidos.
Quantas vezes não vimos essa mesma atitude no país, quando ao se interpretar uma lei o “motorista intérprete” não move a linha divisória para lá ou para cá?
Por que temos que nos submeter aos caprichos que mudam o sentido da norma, ou mesmo a ignoram?
E não se diga que a Lei de Abuso de Autoridade só atingirá os “juízes criminosos”. Seus tipos abertos, rebatidos por Rui Barbosa há mais de cem anos, assemelham-se aos de regimes totalitários, como o nazista e o comunista soviético. Neles tudo cabe, a depender da vontade do intérprete, hoje ou daqui cinquenta anos.
A qualquer momento o “motorista” pode mudar a linha da segregação e pegar quem lhe apetece, mandando que “saia seu lugar”.
Há a lei e há a Justiça. o Dever de todo ser humano é fazer com que a segunda prevaleça, sem incorrer na criminalidade.
O boicote aos ônibus de Montgomery foi um movimento pacífico, a única violência veio dos poderosos contra os manifestantes. Foi igualmente legal, pois seus apoiadores não queimaram ônibus, não viraram veículos, não ingressaram nos transportes e exigiram ocupar todos os assentos.
Não. Pacificamente deixaram de usar o transporte coletivo para, se necessário fosse, andar mais de 30 km até seus trabalhos.
Por 381 dias até a vitória, repito, de forma pacífica e legal, essas pessoas segregadas mantiveram-se firmes em seus propósitos, unidas, por mais que lhes doesse, porque sabiam que, se um cedesse, os demais cederiam.
Para que exista essa união, é preciso a humildade de não se considerar melhor que os demais e a compaixão pelo próximo.
Fato é que a Lei de Abuso de Autoridade veio. Uma lei inconstitucional. Uma lei injusta.
Podemos cruzar os braços por um tempo, mas é inevitável que nós, como juízes, seremos obrigados a aplicá-la e a aplicaremos, infelizmente. Promotores de justiça e policiais também o farão. Criminosos ficarão (ainda mais) à vontade para praticar seus crimes, pois não serão presos.
Aplicaremos a lei como foi (mal) redigida e planejada, pelo tempo que for necessário, até que se perceba o que ela significa para o país: caos, morte, roubo, estupro, corrupção, calote, menos hospitais, menos escolas.
Um país completamente entregue à corrupção e é preciso que isso fique claro. Não há mais alternativa, não há mais saída: a Lei de Abuso de Autoridade é a batalha entre o justo e o injusto, e caberá ao povo brasileiro dizer o que quer, claramente.
Não há como delegar essa escolha.
Quantos dias forem necessários, ainda que esfacelados diante da patente injustiça de nossas ações, embora legais, penso que devemos aplicar essa norma, esperando que essa situação não tenha que durar 381 dias.
Não pode dar certo um país no qual as autoridades desconfiam de seus magistrados. Um sistema que, na contramão de séculos de evolução, parece considerar que o juiz e o policial devem provar sua inocência quando acusados de qualquer ato, ainda que sem provas.
A lei não é o parâmetro absoluto do que é justo ou injusto. Os que defendem isso defendem também a validade da escravidão, dos regimes nazista alemão e soviético russo, os regimes militares, as prisões políticas em Cuba, na Venezuela, na Coreia do Norte, já que tudo isso foi previsto em lei.
A quem interessa moldar normas que apenas perpetuam privilégios e impunidades para uma minoria, na contramão do interesse de todo um povo?
A justiça, presente até nos animais, com mais razão está no ser humano.
Aos juízes, promotores e policiais seria cômodo apenas cumprir a lei, carimbar papeis e ir para casa. Seus salários não serão afetados, nem suas condições de trabalho. Mas quem jurou defender a lei e a justiça não pode abaixar a cabeça para a injustiça, sob pena de permitir que se viole sua própria natureza. Quem se propôs a viver em prol do bem da sociedade, dos injustiçados, de fazer valer o direito obtido ao longo da história pelo sangue e suor dos mártires, não pode omitir-se.
Disse Rosa Parks, “você nunca deve ter medo do que está fazendo quando isso é o certo”.
Edouard Couture, por sua vez, nos lembra que o dia no qual os juízes tiverem medo, ninguém poderá dormir tranquilo. Não sei se o tempo do medo chegou, mas certamente chegou o da institucionalização da impunidade, da perseguição aos honestos, o tempo do terror e da arbitrariedade, e já é certo que ninguém deveria dormir tranquilo.
Fontes:
(1) Bíblia Sagrada
(2) Decreto-Lei n. 406/1938. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-406-4-maio-1938-348724-publicacaooriginal-1-pe.html, 29.09.2019, às 19h57.
(3) Rosa Parks Biography (1913–2005). Disponível em: https://www.biography.com/activist/rosa-parks, 29.09.2019, às 20h09.
(4) Browder v. Gayle, 352 U.S. 903. Disponível em: https://kinginstitute.stanford.edu/encyclopedia/browder-v-gayle-352-us-903, 29.09.2019, às 20h22
(5) 15 Inspiring Quotes from Rosa Parks. Disponível em: http://mentalfloss.com/article/91801/15-inspiring-quotes-rosa-parks, 29.09.2019, às 21h31.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.