A MENTIRA, A LIBERDADE E A SOCIEDADE: A CENSURA (IM)POSSÍVEL
Em um regime democrático diz-se que todos são iguais. Nesse caso, a quem competiria limitar a liberdade de expressão do outro? Com base em quais parâmetros? Seria melhor admitir mais liberdade, mesmo com o risco das mentiras e ilusões, do que um controle do discurso?
O título, eu sei, é estranho. Criados que fomos para considerar a oposição entre a verdade e a mentira como bem e mal, parece absurda a proposição de que a vida na mentira é viável.
Ora, ninguém admitiria de bom grado ser vítima de um mentiroso. Curiosamente, contudo, há algum tempo no Brasil cunhou-se um bordão político: “rouba, mas faz” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Rouba,_mas_faz), referindo-se ao político que é corrupto, mas que também “ajuda” a população.
É algo como que a necessidade de admitir que, se somos obrigados a escolher, nas eleições, sempre entre opções ruins, então é melhor pegar alguém que, mesmo sendo corrupto, vai fazer “alguma coisinha” para o cidadão que paga pela festa. Quem sabe sobrem umas coxinhas murchas no fim da farra para quem ficou do lado de fora?
Aos poucos, como uma síndrome de Estocolmo, aquele que “rouba, mas faz” é visto positivamente, porque a capacidade crítica vai ficando tão nublada que não se consegue imaginar alguém que “faça sem roubar”.
A ideia de que temos de escolher sempre entre alternativas menos piores é uma grande mentira que nos acostumamos a ver como verdade. E a palavra é “sempre”, porque “às vezes” somos colocados em situações em que as opções são nefastas e nenhuma delas evitará uma perda. O grande jogo, contudo, foi fazer você acreditar que esse “às vezes” na verdade é “toda vez”.
E isso é só um pedaço do que é viver na mentira. Vivemos na mentira quando admitimos situações contrárias à verdade.
Para entender toda a bagunça é preciso voltar ao básico e ao óbvio: o que é verdade?
Verdade é a expressão do real, das coisas como são, dos fatos. E a mentira? O falsear intencional da verdade.
Vamos complicar.
Entre esses extremos coloquemos a ilusão como recheio: a crença, confundida com certeza, de que algo é verdadeiro, quando falso, ou falso, quando verdadeiro. Veja só: as coisas continuam sendo como são, mas nós, em razão de limitações várias, não conseguimos apreender isso.
Para o terraplanista, a terra é plana. Para ele não é uma mentira, ou seja, um falsear intencional dos fatos, mas um fato, e errados estão os outros.
Dizem alguns que há ilusões inofensivas, a que chamam de sonhos, como a de imaginar como teria sido melhor a vida se tivesse feito outras escolhas, ou crer-se um talento não reconhecido, ou inteligente demais para o mundo.
Os antigos gregos talvez discordassem dessa ideia, não sem razão, já que alguém só pode desabrochar a totalidade de seu potencial individual (eudaimonia) se antes conhecer a si mesmo. E conhecer a si mesmo e a tudo o mais é reconhecer os fatos, inclusive as próprias limitações.
E por isso, para esses gregos, um escravo não poderia ser “feliz”, entendida a felicidade como esse sentido de realizar seu potencial. Isso acontece porque ao escravo falta a liberdade essencial para poder deliberar-se autonomamente. Em outros termos, aquele que é dominado tem limitada sua capacidade de atuação à vontade de quem o domina.
O indivíduo privado de sua liberdade não pode seguir suas próprias inclinações.
Nesse ponto é oportuno lembrarmos do filósofo estóico Epicteto.
O grego Epicteto (55-135 d.C) foi escravo boa parte de sua vida, o que não lhe impediu de desenvolver sua filosofia. O ponto aqui é que a falta de liberdade do corpo não é a da expressão e a da alma, e, dentro do contexto estóico, o sábio, mesmo escravo, é livre e o tolo, mesmo livre, é escravo.
Quando escravizam apenas seu corpo, você ainda pode ter a alma livre. Mas e quando escravizam sua alma? Sua liberdade de se expressar, de ter suas crenças religiosas? A liberdade de reunir-se?
Essa é a submissão que se encontra nos regimes ditatoriais e que se torna absoluta nos totalitários, como já advertia Hannah Arendt.
Pegue como exemplo a Coréia do Norte. Lá, a religião, a imprensa, a ciência, a arte, a políticas, as roupas, a quantidade de comida, até os cortes de cabelo são regulados pelo estado. As penas por desobedecer ao regime vão de campos de concentração a ser despedaçado vivo por cachorros.
Eu iria dizer que é um país considerado unanimemente violador dos mais básicos direitos, mas lembrei que existem pessoas no ocidente, inclusive no Brasil, que o celebram. É uma pena que a mesma liberdade não é dada aos norte-coreanos.
O Estado, e isso vale até para o pessimismo de Hobbes, no Leviatã, existe para viabilizar a vida em sociedade, nos tirando da guerra de todos contra todos. Ele não é, nem nunca deveria ser, um fim em si, porque quando o Estado se torna o fim, os seres humanos se tornam apenas o meio, subvertendo a ideia de dignidade Kantiana que nos equaliza em valor.
Por isso é preciso ter muito medo quando o Estado começa a dizer sobre o que você pode ou não falar, não só em espaços públicos, na imprensa e nas redes sociais, mas até no âmbito privado, entre amigos e familiares.
Quando o Estado se arroga na condição de único detentor da verdade e, para proteger o cidadão, começa a punir quem contraria a cartilha oficial, obviamente já se perdeu o valor básico que caracteriza todo regime democrático: a liberdade.
Não se protege a democracia perseguindo e punindo quem diverge justamente porque é típico desse regime a pluralidade, como também nos recorda Arendt. Quem pensa assim celebra um sistema ditatorial, se não totalitário.
“Ah, mas e se essa gente estiver espalhando mentiras e teorias perigosas?”.
Bom, quanto às mentiras, elas fazem parte dos grupamentos humanos desde a Idade da Pedra e estão presentes inclusive em outros animais, especialmente nos primatas, como nos exemplifica o livro The Thinking Ape, ao tratar dos babuínos negros do sul da África.
Via de regra, existem leis que tratam de sancionar criminal e civilmente aqueles cujas mentiras venham a causar dano, por exemplo, à honra ou patrimônio de alguém, como acontece no Brasil.
E o que seriam teorias perigosas? Aquelas que divergem do que quem está no poder pensa? As que desagradam a maioria da população? As que ameaçam os titulares do poder? As que promovem o ódio, a segregação, o racismo, a perseguição por conta de sexualidade, gênero, religião etc?
Parece que nesse caso temos duas alternativas:
(i) ou vivemos em um sistema democrático em que as pessoas podem dizer o que pensam (e responder civil e criminalmente por isso), ou seja, um sistema em que todos, isso, todos, são iguais perante à lei em termos de direitos e deveres, logo, cônscios de sua condição.
(ii) ou vivemos em um sistema formado por cidadãos incapazes, cuja mentalidade pode ser facilmente capturada por qualquer um que balance uma bandeira e grite mais alto.
Comecemos pela segunda alternativa. Se o item (ii) for verdadeiro, bom, então a democracia não faz mesmo nenhum sentido no país e precisamos de alguém que defenda o povo de si mesmo. Se o cidadão médio brasileiro é incapaz de entender o básico entre o certo e o errado, então ele também não sabe tomar escolhas adequadas, inclusive votar, o que, aliás, é uma contradição com a ideia de democracia.
Uma macieira, e acredito que isso possa ser dito sem divergências, só pode gerar maçãs. O sistema democrático se baseia na mesma ideia, ou seja, de que o povo detém o poder e escolhe os seus representantes em seu meio, e não vamos discutir se isso é verdade ou mentira.
Ora, não é lógico que um povo que não é maduro o suficiente para entender os riscos de um discurso que celebre regimes totalitários, como o nazista ou comunista, ou práticas nocivas, como a pedofilia e o racismo, seja capaz de escolher em seu meio alguém que, igual a todos os demais cidadãos, seja capaz de discernir o certo do errado.
Lembremos: o candidato eleito, o servidor concursado, até aquele nomeado politicamente que entra sem concurso, e sem voto, são tirados do meio do mesmo povo a que devem “servir”.
É como a macieira dar jaca. Em outras palavras, é como esperar que em meio ao povo todos sejam iguais, mas, como adverte Orwell n’A Revolução dos Bichos, alguns sejam mais iguais do que os outros, e esses mais iguais tenham uma visão de mundo tão melhor do que os menos iguais que possam dizer a que tipo de coisas esses menos iguais possam ter acesso.
Salvo equívoco, o regime no qual uma minoria se destaca da maioria e deve conduzir os destinos da nação se chama aristocracia, ou oligarquia, mas não democracia.
Se verdadeiro for o item (i), concordamos que o cidadão sabe o certo e o errado e não precisa de uma “elite defensora da democracia” para defender o povo de si mesmo, dizendo a que ele pode ter acesso e sobre o que pode pensar, porque, sabendo o que é ou não nocivo, pelo menos no essencial, não vai se deixar levar por qualquer aventureiro que estimule o ódio, o preconceito, como o preconceito de classes, o racial, o de gênero ou sexualidade.
Mas e se os cidadãos não estiverem maduros o suficiente, e se puderem ser capturados pelas mentiras?
Poderíamos aqui começar todo um debate sobre o que é mentira e o que é verdade, talvez concluindo que “mentira”, em termos de política e jogo de poder, seja tudo o que desagrade o status quo e que não necessariamente seja a perversão ou a negação do real.
No entanto, para resumir, quanto à dúvida continua valendo a mesma lógica proposta: ou o povo tem consciência de suas escolhas e pode votar, e temos uma democracia, ou ele não tem consciência do que faz e precisa de alguém que diga o que ele pode ou não fazer, e aí temos uma ditadura (tirania ou oligarquia) ou um regime totalitário.
Por povo “mais ou menos maduro” poder-se-ia falar dos regimes de transição no Oriente Médio após a queda de ditadores como Saddam e Ghadaffi, mas, em um resumo grosseiro da situação, parece que essa transição se daria muito mais pela intervenção violenta de grupos tentando assumir o vácuo de poder deixado pelos tiranos do que por uma imaturidade do povo.
Em regimes democráticos não se pode falar em um povo “quase maduro”. Um povo “quase maduro” não vota. Essa é a desculpa para os cargos biônicos, essa é a desculpa da aristocracia política e cultural que se disfarça como democrática: nós sabemos o que é melhor pra você.
É preciso ter pavor e defender-se enfaticamente no campo social daqueles que usam expressões como essa: “estou lutando por você”, “um dia você vai me agradecer”, “eu sei o que é melhor para você”. Essas frases só existem em regimes verticalizados, ou seja, em que alguém que está acima decide pelos que estão abaixo sem participação desses.
Um pai ou uma mãe diriam isso aos seus filhos, porque uma família é, e precisa ser, verticalizada: falta maturidade a quem está em processo de compreensão do mundo.
Mas em um regime democrático a regra é a horizontalidade, isto é, todos no mesmo patamar de direitos e deveres. Ninguém pode se arrogar em senhor do senso crítico alheio.
Já ouviu falar de sistema entrópico? Trata-se, grosso modo, de um sistema fechado, isto é, aquele que não possui interferência de elementos externos e que, portanto, tende à entropia, ou à desorganização, em resumo, logo, à sua própria extinção.
Regimes ditatoriais e totalitários são entrópicos: eles não admitem interferência de nada que venha de fora, e, por isso, são regimes fadados à extinção, como historicamente se viu, em especial no século XX. Triste, porém, são os danos que esses regimes deixam até lá.
A mentira e a ilusão fazem parte da nossa caminhada enquanto espécie. Quem se propõe a combater a natureza humana com repressão não o faz em prol da verdade, mas sim para obter poder e controle.
Curiosamente, os mesmos que criticam a morte dos divergentes na fogueira da Inquisição não vêem nada de errado quando pessoas que pensam diferente, por mais idiotas que sejam essas ideias, são oprimidas e perseguidas.
Perseguir, reprimir, odiar, atacar, prender ou suprimir aqueles que pensam diferente, por mais imbecil que seja a ideia, é a fórmula entrópica das ditaduras e do totalitarismo. A história nos mostra, também, como essa perseguição rapidamente se vira contra aqueles que perseguiam, porque a sede de poder e de controle não se extingue. Que o diga a Revolução Francesa e sua sede inesgotável de sangue. Que o diga o regime comunista soviético, que mesmo em seus altos escalões via repercutir o medo e a perseguição. Que o digam os vários e vários regimes brutais, dos quais o século XX foi prenhe, em que o ódio e o medo afastaram até a sombra da liberdade.
Sempre imaginei que a solução para a estupidez fosse o aprendizado. Se não for isso, vamos trocar as salas de aula por pedaços de pau e que vençam os mais sábios.
A mentira sempre será parte da sociedade humana. É possível conviver com ela, como de fato temos convivido desde a pré-história e, ao que parece, com um relativo sucesso, apesar dos tropeços.
É possível, portanto, viver com a mentira ao lado. O que não se pode é viver sem liberdade.
É a liberdade a única via que permite ao indivíduo (a menor minoria do mundo) questionar, buscar informações e expressar-se.
Sem liberdade a vida se torna insuportável, um trem fantasma no qual em cada curva pode saltar um agente do estado pronto para calar sua voz e algemá-lo por crimes de opinião.
Pessoas livres para errar, no sentido mais amplo do termo, também são livres para criar um mundo melhor.
Quando Jesus, em uma tocante passagem bíblica, fala que a verdade liberta, resume séculos de doutrina e reflexão. A verdade a que Ele se refere é a de conhecimento mais amplo, mas a precede o livre arbítrio, ou seja, a possibilidade de cada um decidir sobre o caminho que vai tomar.
Somente os mais ignorantes, ou os que mais se beneficiam desse estado de coisas, defendem a supressão da livre expressão do indivíduo (repito: a menor minoria do mundo). Qualquer outro sabe que estamos longe da perfeição, e justamente por isso cercear a liberdade é impedir o debate e perpetuar regimes imperfeitos.
Na esfera da filosofia política, recordo pela terceira e última vez neste artigo o pensamento de Hannah Arendt, que fugiu dos terrores do nazismo e encontrou sua liberdade de expressão nos EUA.
Disse a pensadora que “o revolucionário mais radical se torna um conservador no dia seguinte à revolução”, e que “poder e violência são opostos, onde um domina absolutamente, o outro está ausente”. Em síntese, ninguém que atinge o controle quer abrir mão da sua forma de pensar, e vê no diferente a ameaça ao status quo obtido. O conservadorismo dos revolucionários vitoriosos tende a ser brutal com a divergência.
Para Arendt não há solução fora do diálogo. A violência é o fim do debate. A característica mais essencial e marcante da democracia há de ser a pluralidade, e ela só existe quando visões diferentes se encontram, mas não para o embate, e sim para o debate.
Quando as redes sociais se enchem de palavras de ódio e perseguição com a polarização do outro, e quando o outro se torna não alguém, mas algo, a violência venceu.
O uso do mecanismo estatal para suprimir as liberdades individuais sob alegação de proteger o povo sempre foi uma mentira. E só podemos ver isso porque temos liberdade para tanto.
A mentira está aí e nos acompanhará pelos próximos milênios, se não nos exterminarmos antes.
E porque ela está aí, podemos descobrir a verdade, a mesma verdade que liberta, mas que, antes, demanda que se seja livre para procurá-la.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.