A imitação de Cristo, o contrato social e a impunidade
Qualquer sociedade se erige primeiro em deveres, para depois conseguir garantir os direitos. Se os primeiros não forem praticados, os segundos com certeza não estarão garantidos.
Vez ou outra algum distúrbio, mental ou de caráter, faz com que um indivíduo qualquer tente se identificar com Jesus, ou suplantá-lo, seja literalmente, no caso da síndrome de Jerusalém, seja como um messias de determinada ideologia, servindo aí a imagem de Cristo como paradigma do suposto martírio, incompreensão e “perseguição por parte das autoridades” que sofreria o líder moderno.
Não raro, também em todo Natal, Páscoa ou data religiosa algum oportunista de tocaia, nunca cristão, se aproveita da imagem de Jesus como metáfora para a defesa de sua ideologia e ataque a todos os demais que discordam.
Excetuado o dúplice caráter cômico e patético dessas figuras, é certo que a maioria que se imputa o caráter messiânico sem que o seja por distúrbio psiquiátrico o faz em proveito próprio, não alheio, usualmente para escapar das sanções legais ou obter algum outro tipo de vantagem.
Conclui-se que, afinal, uma criatura divina certamente não pode responder às leis dos homens, mas apenas à obscura e pós-fabricada norma de seu próprio manual, escrito e reescrito conforme a conveniência.
É até curioso que, por exemplo, aqueles que professam o materialismo se valham daquele que é o arquétipo da deidade para bilhões de pessoas. Isso ocorre porque, no sincretismo da impunidade, todas as fés são bem-vindas, uma vez que os fins justificam os meios.
Daí a razão pela qual uma ideologia que abomine e persiga a religião consiga, sem corar, dizer que Jesus era socialista, talvez.
Como me faltam os atributos de um teólogo, me resta, como a qualquer pessoa, a interpretação pessoal do Evangelho, e nele não me parece haver estímulo à impunidade, nem à fragmentação do tecido social, notadamente para defender qualquer tipo de crime ou criminoso.
Nesse caso, e aqui segue uma hermenêutica laica antes que torçam o nariz para a fé, há uma plêiade de ensinamentos de Cristo que ultrapassa o aspecto religioso.
Esclareço que o uso do Evangelho nesse texto não tem o objetivo de pregação, e sim de debate filosófico, de forma a demonstrar como a tentativa de vincular a imagem de Cristo a qualquer político, notadamente os que praticaram atos de corrupção ou outros crimes, é um rematado absurdo, estratagema para subversão da verdade e uma possível maneira de instilar em seus ignorantes seguidores o desprezo pela lei e a ordem com base numa religiosidade de fundo.
Ilustrativamente a esse caso de ideia de subversão, quero crer que há uma lição de contrato social com cerca de dois mil anos presente em Mateus, 22, 15:22, repetida em Lucas, XX, 20:26 e Marcos, XII, 13:17.
Trata-se do episódio em que os fariseus e os herodianos, ardilosamente, após diversos elogios, perguntaram a Jesus se era correto que os judeus pagassem tributo a César.
Era uma pergunta capciosa e com segundas intenções: se Cristo dissesse que não deveriam pagar, opondo-se aos impostos, praticaria um crime. Se dissesse que sim, pareceria ao povo mais um submisso ao invasor romano. Se não tivesse resposta, pareceria tíbio e sua aura de liderança se perderia.
O que fez Jesus? Pediu uma moeda e perguntou aos presentes de quem era face estampada. “De César”, disseram. No que respondeu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Embora alguns utilizem essa passagem como fundamento de intangibilidade do poder temporal e submissão dos cristãos aos arbítrios governamentais, uma das interpretações possíveis é a de que Jesus apontava a hipocrisia dos fariseus.
A moeda, em grosseiro resumo, é o melhor símbolo de poder organizado, porque significa que existe um sistema de finanças e de troca de bens e serviços por dinheiro, garantido pelo próprio estado.
Em outras palavras, Cristo apontou que era hipocrisia utilizar a sociedade naquilo que era benéfica, mas se negar a cumprir seus deveres temporais, constituindo uma relação parasitária.
Excelente exemplo do que é o contrato social, ou seja, as pessoas se reúnem em sociedade limitando seus direitos horizontalmente, mas ampliando verticalmente a fruição daqueles que permaneceram.
A ideia da sociedade é que os seus componentes possam sair do estado natural, onde se é tão livre quanto se é forte (lei do mais forte, matsianyaya), e ingressar numa sociedade organizada, onde a lei definirá direitos e deveres.
A vantagem é evidente: diminui-se o risco de violências físicas, patrimoniais e sexuais, extirpa-se o medo da violência iminente, permite-se uma troca positiva entre seus membros, com acréscimo de tempo para pensar e desenvolver. O benefício é, além de coletivo, também egoístico, pessoal.
Quando o indivíduo pretende manter-se no estado natural e ainda se beneficiar da sociedade, podemos classificá-lo como um criminoso. É o caso do ladrão, do estuprador, do homicida e do corrupto: intencionam violar as leis que mantêm a comunidade coesa, mas se negam a responder por seus crimes.
Para o crápula é uma situação de ganha-ganha. A impunidade concede ao criminoso o que apenas se vê nas histórias do super-homem: um indivíduo imune a qualquer consequência de seus atos e limitado apenas por sua própria consciência.
Se na natureza esse indivíduo criminoso estaria à mercê de quem fosse mais forte, ou mesmo de um grupo, que resolvesse puni-lo, o Estado garante que sua dignidade seja respeitada, isto é, impede que a vítima e/ou a comunidade se “vingue”.
Porém, se o Estado não aplica a ele nenhuma pena, usando seu aparato apenas para garantir a impunidade do bandido, ele cria uma espécie de super-homem, como sói ocorrer em regimes ditatoriais, nos quais existem indivíduos impermeáveis à punição legal e cujos atos mais torpes são praticados sem medo de represália.
Por óbvio, tais regimes possuem um prazo limitado de vida. Seja no Egito, na Escócia ou no Brasil, os oprimidos se unem contra os que oprimem mais cedo ou mais tarde, especialmente pela opressão organizada por ideologias e bandeiras que prometem liberdade, mas entregam apenas escravidão física, moral e intelectual.
Cristo diz que o que é de César (Estado), deve ser devolvido a César (Estado). Mas de modo algum isso significa passividade diante da tirania ou da opressão, já que os romanos eram também invasores.
A complementação, “dai a Deus o que é de Deus”, exige do cidadão uma conduta proba, o exercício de virtudes necessárias para a manutenção da vida em sociedade, como, aliás, faz parte de qualquer filosofia sã.
A exigência da virtude individual e social é uma presença que remonta há milênios, como nos textos gregos, confucionistas, hindus e taoístas.
A leitura isolada da frase é um salvo-conduto para os corruptos, com a hermenêutica de que não de pode questionar o poder temporal.
Mas uma leitura global das virtudes pregadas por Cristo demanda um posicionamento ativo diante da injustiça infligida contra si ou qualquer outra criatura, cristã ou não, e não uma submissão a toda sorte de arbitrariedades.
Para isso demanda-se uma mudança interna, que é a proposta de evolução e reconhecimento das limitações, um exame pessoal. O “reino dos céus”, paraíso, elísio, é uma obtenção pessoal, não é deste mundo, mas a prática das virtudes é uma demanda imediata e concreta.
Em outros termos, embora a evolução seja sempre individual, ela só se torna possível em um ambiente coletivo seguro (virtuoso), que, por sua vez, depende de pessoas éticas (virtuosas) para existir. Há uma simbiose que o parasitismo criminoso não compreende, ou não interessa compreender.
O indivíduo, ou grupo, que se propõe a não obedecer a lei no que compete aos seus deveres, que se sente apto a romper as regras básicas violando a propriedade privada e pública, que não cora ao destruir o que foi construído, e ainda intenta fugir à sua responsabilidade é claramente mau e não colabora para a sociedade.
É o tipo de criatura que busca apenas extrair vantagem, sem qualquer contraprestação. A impunidade nesses casos serve de estímulo a que novas condutas sejam praticadas e mais indivíduos, vendo a ausência de consequência, passem a aderir a atos criminosos, de maior ou menor grau.
Com isso o tecido social se esgarça, até que ele é totalmente rasgado. A partir daí há uma aglutinação de pessoas, não uma sociedade organizada, sendo o estado representação de um leviatã maligno, que tira do cidadão o tributo, mas não retorna nenhum benefício, e ainda apanigua grupos criminosos ou “indivíduos em confronto com a lei”, eufemismo para bandido.
Há uma subversão da finalidade do contrato social de proteção e apoio mútuos para exploração de uma parte da comunidade através da força estatal, de modo comissivo ou omissivo, mas adrede.
Resumindo: aquele que se beneficia do Estado de qualquer modo, deve também seguir as leis postas, mas de forma alguma submeter-se a normas não-virtuosas, sendo um imperativo existencial contrapor-se à iniquidade.
É necessário, portanto, reconhecer o Estado organizado como melhor forma de vida social. As limitações dessa organização exigem do indivíduo e da sociedade o dever de aprimorá-lo, e não destrui-lo ou substitui-lo por um regime não-virtuoso, como o ditatorial.
O adágio aristotélico já dizia que a Natureza tem horror ao vácuo, o que na prática se demonstra com o caos subsequente à quebra da ordem institucional, com toda sorte de abusos e maldades perpetradas contra a população por grupos em busca de poder, exemplos que a história, recente e remota, traz em grande quantidade.
A certeza do rompimento social acontece quando um indivíduo, ou, mais perigosamente, um grupo busca subverter o sistema em nome de uma ideologia, justificando os meios pelos fins almejados, não reconhecendo o Estado que o pune, mas buscando a proteção desse mesmo Estado para os seus direitos.
A bem dizer, são indivíduos que querem ter todos os direitos e nenhum dever, como se o contrato social se prestasse a conferir-lhes poderes divinos vedados ao comum mortal.
Tal atitude é inadmissível, o uso do sistema com ares de legalidade para perpetrar crimes é a pior forma de violência, porque torna instável a vida de todo um país apenas para garantir vantagens pessoais e um projeto de poder para uma camarilha.
Não há nada de novo nisso, porque entra na mesma linha de filósofos como Platão, que reconhecia uma perfeição das ideias e a imperfeição da matéria.
Vale ainda da leitura de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Confúcio, Lao-Tsé e Montesquieu sobre a importância do contrato social.
Talvez alguns torçam o nariz à menção de Cristo nesse texto e considerem, não sem razão, que a interpretação tenha ido longe demais, utilizando teorias indisponíveis à época para o que pode ter sido apenas uma altercação entre os envolvidos.
Contudo, é uma hermenêutica possível, tenha sido esta ou não a intenção do autor do trecho, e me parece deveras lógico que a impunidade estimula o crime e o parasitismo social.
Qualquer sociedade se erige primeiro em deveres, para depois conseguir garantir os direitos. Se os primeiros não forem praticados, os segundos com certeza não estarão garantidos, como é o caso do Brasil, onde os criminosos são cidadãos de primeira classe e, os honestos, de terceira.
Imagem: Render Unto Caesar por Anton Dorph
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.