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A HISTÓRIA TEM FIM: POTÊNCIA, INFELICIDADE E UM POUCO SOBRE TRIBUNAIS

Eduardo Perez
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A HISTÓRIA TEM FIM: POTÊNCIA, INFELICIDADE E UM POUCO SOBRE TRIBUNAIS

O Iluminismo, grosso modo, trouxe dois grandes presentes em sua caixa de Pandora: a ideia de que Deus não existe e é só um mito de mentes obscuras, e a de que a humanidade pode tudo com sua potência de animal racional.


Os filhotes dos anos 80, como eu, e quem gosta de bons filmes, irão se lembrar da película “História Sem Fim” (1984), na qual o destino do leitor e do menino guerreiro Atreyu, protagonista do livro, se mesclam na luta contra o Nada que ameaça fazer desaparecer todo o mundo.


Quero pegar uma cena específica do filme, na qual Atreyu reencontra o Come-Pedra, um gigante de pedra, após o Nada levar seus amigos. Esse é o diálogo (https://www.youtube.com/watch?v=1EyGCTwvsgA):



Come-Pedra (olhando suas mãos)
Olha só, minhas mãos parecem ser grandes e parecem ser fortes, não é? Sempre acreditei que fossem fortes. Meus amiguinhos. O pequeno homem com o caracol de corrida, o elfo, até mesmo o estúpido morcego. Eu não consegui segurá-los. O Nada arrancou todos eles das minhas mãos. Eu falhei.
Atreyu
Você não falhou. Eu que fui o escolhido para deter o Nada. Mas eu perdi o Auryn, não encontro meu dragão da sorte, e agora não poderei cruzar as fronteiras de Fantasia.
Come-Pedra
Ouça, o Nada chegará a qualquer instante. Eu vou ficar aqui sentado e deixar que ele me leve. Minhas mãos parecem ser muito fortes, não parecem?



História Sem Fim é um filme profundo, e esse pequeno trecho ilustra como todos estamos sujeitos à impotência diante de forças incontroláveis. E mais terrível é o baque quão mais forte se pensa que é.


O gigante acreditava que poderia salvar seus amigos do Nada, mas não pôde. Incapaz de lidar com a impotência, afundou-se em depressão e se deixou consumir sem luta.


Essa lição serve a cada ser humano e servirá ao longo de toda a história, como já nos ensinavam os gregos em suas tragédias: não controlamos o destino, há poderes maiores que a humanidade e a única coisa que podemos controlar são as nossas próprias ações e nossa forma de reagir, seja ao que advém delas, seja às vicissitudes do destino, também chamado de fortuna.


O Iluminismo, grosso modo, trouxe dois grandes presentes em sua caixa de Pandora: a ideia de que Deus não existe e é só um mito de mentes obscuras, e a de que a humanidade pode tudo com sua potência de animal racional.


A promessa iluminista do paraíso terrestre, batizada com o mar de sangue da Revolução Francesa, nunca foi cumprida e nem o será. O mundo, a realidade é um lugar de contingências, ou de incertezas, e de escassez.


A assertiva de que o homem é um animal racional primeiro nos desvincula da ideia do divino, reduzindo-nos à matéria e às reações químicas, e, depois, pela parte da razão, diz que tem a potência para controlar o mundo.


A falsa sensação de controle e poder, impossível de se concretizar, só pode gerar uma raça humana mimada, frustrada, deprimida e raivosa. Para esse humano padrão, criado dentro do espírito iluminista, potência é felicidade e impotência é tristeza, ou seja, se eu posso mais, se eu tenho mais poder para fazer o que quero, sou feliz, e infeliz caso contrário.


No entanto, o mundo tem duas características principais que já mencionamos. A escassez é uma delas, ou seja, não há tudo para todo mundo, não só no aspecto material, mas também no relacional.


Aliás, a escassez é o que dá forma à economia. O ouro, as obras de arte, o dinheiro, os carros, enfim, isso tudo só vale porque é raro. Contudo, também as relações são raras. Se duas pessoas amam uma outra eroticamente, via de regra só uma delas será a escolhida. Só há uma vaga em determinado emprego para milhares de candidatos. Havia artistas mais talentosos do que Basquiat, mas só Basquiat foi alvo da mídia.


Nosso tempo é o que há de mais caro, porque insubstituível.


Portanto, é evidente que no choque de potências entre humanos sempre haverá perdedores e vencedores.


O resultado disso é que aqueles que vêem sua potência aumentada se sentem maiores, mais “felizes”, enquanto que os que perdem, que vêem sua potência diminuída, se sentem infelizes, tristes, raivosos.


Que o digam os tiranos, os totalitaristas, os poderosos política e/ou economicamente, que do alto de suas posições se inebriam com a sensação de potência, satisfazendo seus desejos mais torpes, desde a perseguição aos desafetos até às redes de pedofilia, como a mídia costuma mostrar.


Mas essa condição humana só se destaca, e parece relevante, pela bolha criada por uma sociedade organizada, que é, convenhamos, uma pequena parte da realidade apenas. O mundo real é muito maior, e, quando defrontado com ele, a humanidade é impotente, por isso o Iluminismo serve no máximo até a porta de saída do parquinho: da porta para fora haverá dragões.


Falamos da escassez, mas também precisamos falar da já comentada contingência. A realidade é tecida pela imprevisibilidade e pela impermanência. 


Diante da realidade toda potência humana se desfaz. Não há dinheiro, não há armas, não há exército contra a fortuna. Que o digam Mussolini, pendurado em praça pública pelos pés, ou Stálin, semi-consciente no chão do quarto coberto em sua própria urina.


Os ditadores sempre sucumbiram: se não pela mão de suas vítimas, pela inexorável força do destino.


O Come-Pedra estava longe, claro, de um ditador. Era apenas orgulhoso de seu tamanho e de sua força. Afinal, quem se oporia a uma montanha?


Porém, quando confrontado com as contingências da vida, representadas pelo Nada, se mostrou impotente. E qual foi sua reação? Nostalgia, depressão e capitulação.


Fazendo um rápido paralelo disso com a realidade brasileira, vemos que existem dois aspectos em que a hybris, ou excessivo orgulho, se manifesta como potência e merecem atenção: na função de legislar e na de julgar.


Ao criar leis, não há um compromisso com a realidade, só com as ideologias, como se o mundo se curvasse aos desejos humanos de como ele deveria ser, quando na verdade deveria regular a interação sobre as coisas como elas são.


Surge aí uma plêiade de normas que, quando não são inúteis, são perigosas, como, por exemplo, as que tratam criminosos como doentes e não como… criminosos. 


Da mesma forma quando o Judiciário se põe a querer regular o mundo com o compromisso da visão particular de justiça de quem julga, com seus vieses e seus interesses, sejam quais forem.


É a questão da potência. Quanto mais distante do real, quanto mais longe das consequências, mais essa potência se manifesta de forma desequilibrada na tentativa de moldar o mundo ao seu desejo.


Há aí um supremo delírio de, desconsiderando a história e a natureza humana, criar uma distopia na qual serão deuses, mesmo que de papel. Afinal, o poder vicia, mas é preciso estar cada dia mais longe do real para que a impressão de potência aumente.


Por outro lado, não se pode olvidar que existe boa intenção em outros casos.


O juiz se depara com situações lamentáveis que estão para além de sua capacidade de correção com base no poder que lhe é assegurado. Situações nas quais a lei é insuficiente para atender, ou que o ordenamento jurídico não comporta, ou só porque são coisas que acontecem na vida e não há “culpados”.


Lidar com o Judiciário é lidar com a miséria humana em todos os sentidos: material e moral. O que fazer diante de uma mãe que teve o filho assassinado? Ou de quem pleiteia uma verba e, mesmo miserável, não faz jus? O que fazer diante de um filho despedaçado espiritualmente pela disputa da guarda por seus pais?


São três as reações possíveis.


A primeira, de espírito iluminista, é tentar resolver tudo “com as boas e grandes mãos fortes”. Aí surge o ativismo, o despotismo judicial, aquele que não vê na lei limites, mas no máximo orientações, quando não obstáculos para a “verdadeira justiça”.


É o momento em que aparecem termos que fariam Aristoteles arrancar as barbas, como “justiça social”, “justiça econômica”, “justiça étnica”, e todos os outros atributos que jamais deveriam ser atrelados à justiça, porque… bem, justiça é justiça em seu conceito mais puro. Ela é equilíbrio e imparcialidade. Se ela pende para um lado, ja não é justiça.


Então a reação primeira é essa, a de, inebriado de potência pela força do cargo, buscar soluções que por vezes violam a lei, surpreendem as partes e constituem uma visão particular de justo do julgador.


A segunda, é olhar as próprias mãos e ver como elas são insuficientes. Vendo-se incapaz de resolver a situação, já menos iludido com a ideia de que tudo pode, o magistrado se deprime ao lidar com a impotência.


A mentalidade iluminista de que a razão soluciona tudo é ineficaz diante das contingências do mundo, o que a tragédia grega sempre mostrou mui claramente. 


Aquele que se livra do vício da ideia de potência inexorável passa, inevitavelmente, pelo “vale das sombras da morte” que representa a impotência.


Já ciente de suas limitações, mas ainda preso às promessas antigas do Iluminismo, é natural que venha a se sentir infeliz ao notar que sua vontade de resolver os problemas que lhes são postos de forma direta ou colateral (desejo) não encontra solução viável pelas contingências e escassez do mundo (realidade).


E no confronto entre desejo e realidade, o primeiro habitualmente perde, e, inevitavelmente, ao final, fracassa, porque somos mortais num mundo contingente.


San Juan de La Cruz, cuja mística poética é, apesar de hermética, lúcida, ilustra essa condição com o que chama de Noite Escura da Alma, que não é um estágio esotérico para monges e iniciados, mas uma passagem humana natural, uma travessia entre a ignorância, ou o sono, e a iluminação (não o iluminismo), ou o despertar.


A Noite Escura da Alma é, como toda travessia, um momento em que se abandona a segurança e a certeza da terra firme para, passando pela ponte, se chegar ao outro lado.


Há quem sucumba à reação da depressão e tristeza ao lidar com a impotência de não poder solucionar todos os problemas do mundo.


Aquele que fica pelo caminho dessa travessia adoece e pode padecer de outro mal ainda, o de odiar aqueles que considera que são o obstáculo à sua potência. Daí surgem os movimentos que falam sobre amor e prometem a justiça, o bem comum, a prosperidade, mas apenas sobre os corpos dos que são seus “inimigos”, nada diferente do batismo francês que combateu o mal com um mal ainda pior.


Edmund Burke, o filósofo irlandês, ilustra o tema ao citar o episódio da invasão do quarto,  e da nudez, de Maria Antonieta, concluindo que, no momento em que se descobre que a rainha é só uma mulher, e que uma mulher é só um animal, e não da mais alta ordem, então não há ordem no mundo, ou, nas palavras que Shakespeare coloca nos lábios de Macbeth, outro exemplo de potência iludida e hybris, a vida “é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”.


Evidentemente que o comentário de Burke possui variações diversas que extrapolam esse texto, mas é suficiente para demonstrar que, se o homem é só um animal, não há sacralidade nas pessoas. Se não há sacralidade, não há limites para o que possa ser feito.


Um exemplo: diz-se que, durante o Reino de Terror da Revolução Francesa, corpos recentemente guilhotinados eram manipulados como fantoches em comédias grotescas na praça para um alegre público. 


A incapacidade de compreender a impotência pessoal e humana, portanto, induz a um estado patológico.


A terceira reação possível, como solução, é abandonar a potência e a impotência e abraçar a tragédia como parte da existência. Por tragédia entenda-se a escassez e a contingência a que todos estamos sujeitos.


Portanto, do magistrado ativista, que quer “consertar o mundo” com suas decisões, olvidando que esse mesmo mundo é feito de pessoas e fazendo seu desejo se impôr sobre a liberdade alheia, passa-se ao deprimido, talvez revoltado, mas com certeza frustrado e doente, até o terceiro estágio, que não é o de apatia, mas de reconhecimento de suas limitações.


Reconhecer seu lugar em contextos pontuais e costurá-los no global é, ao fim e ao cabo, também a eudaimonia grega, ou florescimento de sua própria natureza.


Aquele que quer “consertar” a sociedade precisa, como dito, lembrar-se que ela não é composta da “humanidade” enquanto conceito abstrato e aglutinativo, mas de pessoas, seres individuais, com a mesma natureza do auto proclamado messias.


Reconhecer suas limitações é também dar espaço a que os outros floresçam, e a soma dessa maturidade é o que nos catapulta adiante, que permite o salto evolutivo. Aquele que se arroga no papel de paradigma e censor de tudo e de todos furta dos demais a oportunidade de que vivam, porque cerceia sua liberdade.


O paternalismo exacerbado típico de ditaduras ou de sociedades imaturas que terceirizam para os políticos, e nesse caso inclui-se o Judiciário como agente político, o seu destino.


A felicidade que a potência traz é limitada e dependente, muito diferente daquela que trata o aspecto grego da eudaimonia, ou da beatitude agostiniana quando versa sobre a posse de Deus, que libertam.


Caminho certo para a frustração é tentar ser a régua e o fiscal do mundo todo.


Isso significa aceitar tudo? Não, mas estoicamente entender que somos capazes de controlar nossas ações, mas não temos controle sobre todas as consequências, sobre a ilimitabilidade delas no tempo, como ensina Hannah Arendt.


O conhecimento das coisas como são, por exemplo, mostrou que o homem não voaria batendo as asas, mas poderia construir um aparelho que, valendo-se das leis da física, pudesse alçar vôo.


É preciso entender suas limitações para não se jogar quixotescamente contra moinhos de vento, uma luta inútil que é apenas a celebração do próprio ego.


Combater é preciso, mas combater o bom combate.


Lutar, mesmo contra o inevitável, mas sem a ilusão da potência. Lutar porque é necessário, porque precisa ser feito.


Dylan Thomas, o poeta galês, escreveu um poema para seu pai que, velho e doente, havia desistido de lutar pela vida: “Do not go gentle into that good night”, cuja tradução que mais me agrada, “Não entres nessa noite acolhedora com doçura”, é de Ivan Junqueira e segue completa ao final do texto.


Em seu ápice, narra o poeta:


E a ti,meu pai, te imploro agora, lá na cúpula
                                              [ obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima
                                              [ bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.



Somos responsáveis pela qualidade e virtude de nossas ações. A potência e a impotência são o jogo do egoísmo sobre o mundo.


Desapegar desse círculo vicioso é diferente da apatia, pelo contrário, é a lucidez que permite fazer a diferença, mesmo diante do inevitável.


Todos estamos sujeitos à fortuna e, quando ela vier em sua última forma, urge lembrar:


Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.




~*~



NÃO ENTRES NESSA NOITE ACOLHEDORA COM DOÇURA

                    Tradução: Ivan Junqueira


Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva
                                               [ lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha
                                               [ esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela
                                               [ alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde
                                               [ baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea
                                               [ altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua
                                               [ travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os
                                              [ transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se
                                              [ alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

E a ti,meu pai, te imploro agora, lá na cúpula
                                              [ obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima
                                              [ bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT


Do not go gentle into that good night,

Old age should burn and rave at close of day;

Rage, rage against the dying of the light.


Though wise men at their end know dark is right,

Because their words had forked no lightning they

Do not go gentle into that good night.


Good men, the last wave by, crying how bright

Their frail deeds might have danced in a green bay,

Rage, rage against the dying of the light.


Wild men who caught and sang the sun in flight,

And learn, too late, they grieved it on its way,

Do not go gentle into that good night.


Grave men, near death, who see with blinding sight

Blind eyes could blaze like meteors and be gay, 

Rage, rage against the dying of the light.


And you, my father, there on the sad height,

Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.

Do not go gentle into that good night.

Rage, rage against the dying of the light.