A forma da água, a deformidade da alma
Algumas considerações sobre o filme "A forma da água" (the shape of water) para fora da dicotomia política.
Aviso que o texto pode conter algumas revelações do filme que abre o título deste artigo, de modo que, se você se importa, talvez não queira lê-lo.
Como já faz algum tempo que a película está em cartaz, e até Oscar ganhou, quero crer que muitos assistiram a esta obra de Guillermo Del Toro, tanto que li alguns comentários dizendo que ele, o filme, seria uma obra panfletária da turma “lacradora”.
Divirjo. O filme é um conto fantástico em todos os termos da palavra. Ele não é um folhetim político, mas uma poesia.
Evidente que alguns, condicionados a enxergar apenas a dicotomia política, doença de nossos tempos, precisam encaixar a obra em sua visão, o que recorda o patriarca do filme Casamento Grego, para quem todas as invenções eram gregas. É claro que, no filme, isso é engraçado, enquanto na vida real essa obsessão política é patológica.
A Forma da Água é um filme sobre pessoas, não sobre cartilhas ideológicas
Elisa Esposito, a muda estranha com sua rotina e seu fetiche, e sua amiga Zelda Fuller, corajosa e divertida, quase maternal, cúmplices e colegas de trabalho na limpeza de uma instalação militar. Giles, o talentoso homossexual idoso e solitário. Robert Hoffstetler, o cientista e espião russo com crise de consciência. Strickland, o homem forte do exército com firmes convicções. A criatura de origem desconhecida, encontrada na Amazônia servindo de deus para uma tribo local.
Há quem veja nisso uma celebração do que chamam de agendas das minorias, ou não sei o nome que o politicamente correto escolheu dar esses dias. Eu só vi pessoas buscando a felicidade, apesar do sistema e de uma moral forjada em hipocrisia.
O filme, ambientado em 1960, período intenso da Guerra Fria e da preocupação com a espionagem soviética, tem essa conflito apenas como pano de fundo. O forte encontra-se na relação entre as personagens.
Elisa leva uma vida simples, com rotina rígida, mantendo a amizade com seu vizinho Giles, com quem divide a paixão por filmes antigos, e com Zelda, melhor amiga que a protege no trabalho e que não raro serve de intérprete.
Elisa é órfã e de origem desconhecida e Zelda é afroamericana e vive reclamando do marido. Ambas trabalham na limpeza e, em razão de sua condição, são invisíveis aos demais.

Giles, já idoso, é homossexual e sofre de paixão platônica por um atendente de lanchonete, enquanto busca uma segunda chance na vida profissional. Embora muito talentoso em desenhar, foi substituído pela fotografia, mais prática e barata. Há no ar ainda a insinuação de que sua sexualidade teria influenciado seu ostracismo.
Strickland é um coronel com firmes convicções sobre religião, nacionalidade, raça, sexualidade, gênero e posição social. É ele quem capturou e levou à instalação militar a criatura, e se deleita em torturá-la.
Robert é um cientista soviético infiltrado como espião na base americana, seguido de perto por seus superiores.
Há direita e esquerda no filme? Com certeza há: de um lado, o governo norte-americano, representado por Strickland, e seu superior, general Hoyt, e, do outro, os agentes russos. Ambos acreditando que fazem o que é certo, firmes em seus dogmas. Ambos pouco se importando com os efeitos colaterais, com as vidas que tomam ou destroem.
Strickland, contudo, não é um vilão no sentido estrito. É uma pessoa que não consegue sair da bolha de suas convicções e observar o outro. Acredita que está fazendo o certo, mas também não abre mão de seus objetivos egoístas de obter sucesso e reconhecimento, em sua concepção claramente relacionados.
Em seus diálogos, em mais de uma oportunidade, deixa claro que acredita que Deus é feito à imagem do homem, mais à sua própria do que à das trabalhadoras da limpeza, por exemplo, e odeia a criatura, por colocar em xeque o seu conceito ao admitir que haveria algo além daquilo que fora programado para acreditar.
A película está longe de ser uma ode ao politicamente correto e à cartilha avassaladora do que pode ou não ser feito e dito. Embora a leitura feita, e divulgada, seja a da crítica do colonialismo, tenho uma interpretação muito mais singela de que é um filme sobre pessoas à margem do sistema, não importa a sua cor ou viés, e dos desenganos dos que se encontram seduzidos pelo mesmo sistema.
Na linha do realismo fantástico de autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortazar, talvez com um excessivo viés hollywodiano, que não tira o seu valor, é uma história de símbolos e resistência.
A criatura anfíbia, chamado de “príncipe” pelo narrador Giles, é visto pelos governos norte-americano e soviético como um patrimônio, algo do qual podem tirar vantagem. Quando sua vivissecção é determinada, para a alegria de Strickland, Robert recebe a ordem de seus superiores russos para matar a criatura, a fim de impedir qualquer avanço ocidental.
Para ambos os governos, e também para o sistema, Robert, Elisa, Zelda, Giles e a criatura eram só ferramentas descartáveis. Isso é de uma clareza cristalina quanto Robert sofre a tentativa de assassinato por parte de seus superiores russos.
Até Strickland é descartável, e descobre isso tarde demais, quando, por uma falha, recebe a ameaça do general Hoyt, até então uma figura paterna e um amigo, de que perderia tudo o que tinha.
No fundo, ninguém está seguro de sua posição.
O sistema mastiga e se alimenta das pessoas, qualquer que seja ele, e não importa o seu tamanho. Isso vale para congregações religiosas, para diretórios acadêmicos e ONGs. Todo e qualquer grupo que se guie por dogmas e seja dominado por interesses egoístas, ainda que travestidos de sociais, nunca permitirá que o indivíduo seja indivíduo, e assim contribua para a coletividade.
A paixão entre Elisa e a criatura assusta alguns, nos tempos de transumanismo, como uma referência a amores estranhos. Mas é bem mais suave, por seu caráter antropomórfico, do que um Zeus convertido em touro ou cisne e montando em mulheres.
O estranho nunca pode amar. Seja uma Bela envolvida numa relação quase bestial com uma Fera, um corcunda em uma catedral parisiense, uma loira na mão de um gorila gigantesco ou apenas duas pessoas que não se encaixam nos estereótipos socialmente aceitos.
A celebração do diferente está presente no mito humano desde priscas eras. Não é um filme de 2017 que irá eclipsar milênios de mitologias de centenas de culturas distintas. O que faz é realçar, com uma leveza providencial aos tempos de ódio, que o que nos torna diferentes não nos torna inimigos.
Ninguém saudável sairá beijando peixes, assim como nenhuma pessoa sã se dirá um lobisomem depois de ler sobre Gilles Garnier, Peter Stumpp ou Mikhail Popkov.
Dogmas duros, mais propriamente cercas para os interesses egoístas, mantêm a população refém de seus próprios desejos e medos.
Em parte isso explica o motivo dos esquecidos, daqueles colocados à margem, como Elisa, Zelda e Giles, serem responsáveis pelo resgate e salvação da criatura, que, de certa forma também os salva, cada um ao seu modo, ao mostrar o que vale na existência.
Com certeza, nem Strickland, nem seus cientistas, Hoyt ou os russos saberiam identificar aquilo que os pequenos identificaram: perdidos em seu egocentrismo, em suas ansiedades e receios, só conseguiam ver a si mesmos, mistos de Narciso e Tântalo.
De olho em uma promoção, em convidar aquela pessoa para sair, em uma televisão nova ou um cadillac, ascender dentro do partido ou qualquer vantagem que seja, estavam, e estão, todos cegos à evidência da vida e ao presente.
Isso me lembra de duas passagens curiosas, uma, da literatura brasileira, quando no livro A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, o mago armênio diz que é um pobre que dá presentes ricos, e recomendo fortemente a leitura do livro.
Outro, é de uma trecho narrado por Alexandra David-Néel, em seu livro Mystiques et Magiciens du Tibet, de 1929, no qual, após visitar o Dalai Lama, deparou-se com um rude asceta que permanecia distante da multidão, sendo esclarecida por seu guia que se tratava de um “naldjorpa bhutani”, um homem que atingira a serenidade perfeita e vivia em isolamento, ali apenas de passagem.
Ao saudá-lo, recebeu de volta apenas um grunhido, com a explicação de seu guia de que tais pessoas eram naturalmente rudes, pois perguntara o que queria aquela idiota. Alexandra disse que queria saber porque ele ridicularizava as pessoas que pediam a benção do Lama, no que teve por resposta: “vaidosas de suas valiosas personalidades e do importantíssimo papel que representam, não são mais do que vermes que se agitam na lama”.
ironicamente, Alexandra perguntou-lhe se não estava imune a tamanha imundície, no que redarguiu o asceta: “tratar de evitá-la é emporcalhar-se mais profundamente… Eu nela debato como o porco, digiro-a e transmuto-a em pó de ouro e em regatos de pura água… Fazer estrelas com excrementos de cães, eis aí a Grande Obra!”.
Nisso não dista da figura de Jesus, que se lançou em meio ao mundo, inclusive entre os estranhos e aqueles colocados à margem do sistema, transformando chumbo em ouro para quem estivesse disposto a aceitar.
Enxergar o outro demanda empatia e compaixão, coisa que o dinheiro ou a posição social não compram, logo, não é o fato de você ser pobre ou rico, homo ou heterossexual, branco, negro ou amarelo, militar ou civil que te fará melhor. Esses são papéis e ferramentas, e a cada um que cabe um interpretar e manusear conforme a grandeza, ou pequenez, de seu caráter.
Do meu lado, sequer via Elisa como humana, e só precisava de um empurrãozinho para se tornar quem era efetivamente, individualizar-se e descobrir-se. E o filme deixa várias pistas disso.
Não foi uma crítica à família tradicional, ao militarismo, ao governo ou o que seja, mas um mito. Os militares não são maus, e já disse que não vi Strickland como um vilão, mas antes uma pessoa condicionada a ver o mundo de certa forma e crente que estava fazendo o que era certo, como milhões de pessoas diariamente fazem, oprimindo as outras, inclusive querendo banir palavras do léxico ou suprimir romances ou trechos da história por não se encaixarem no politicamente correto.
Em outras palavras, os militares no filme são tão maus quanto em ET, ou os soldados que impediram Antígona, ou os que lutaram ao lado dos ingleses em Bannockburn e tantas outras situações. São pessoas que viviam suas vidas, possuíam suas projeções e, o mais das vezes, não tinham alternativa.
Não. A Forma da Água não é um filme contra a família, os valores tradicionais, os militares e o Ocidente. Nele, direita e esquerda, corporações e mesmo pessoas simples são pedaços do sistema que oblitera a felicidade individual, especialmente daquele que é diferente, e com isso perpetua uma sociedade mórbida.
A busca da felicidade é algo sagrado, não a alegria momentânea, mas aquela finalidade para a qual cada um de nós possui propensão e sobre a qual já tive a oportunidade de escrever antes. Jung trata do tema com maestria, navegando pela antropologia e pelo simbolismo, para mostrar que somente indivíduos saudáveis e completos podem formar um coletivo com sentido.
Uma sociedade formada por indivíduos doentes será igualmente doente.
No filme, as pessoas buscam a felicidade, ou melhor, a propensão de suas naturezas, e isso inclui o gay idoso, a muda fetichista, a afroamericana maternal e o espião russo devotado à beleza e à ciência, que abandonam um sistema que os viola em troca de uma integração que os completa, ainda que o preço seja caro.
Tolkien, mais conhecido pelo Hobbit e pelo Senhor dos Anéis, mas que deixou uma vasta, complexa e inspiradora obra, possui algumas frases interessantes ditas por seus personagens, como a de Galadriel, de que “mesmo a menor das pessoas pode mudar o curso do futuro”, ou a de Thorin Escudo de Carvalho, de que “se mais de nos valorizássemos a comida e a bebida e a música acima do acúmulo de ouro, seria um mundo melhor”.
Que o diga aquele anônimo que retirou à força Gandhi, o advogado, do vagão exclusivo para brancos, permitindo que ele se tornasse Gandhi, o Mahatma, a grande alma.
Tolkien sabia o que dizia. Seus heróis improváveis superaram as adversidades apenas com a amizade, a coragem e a fé.
A sociedade é basicamente formada por hobbits, pessoas acostumadas com a rotina, em comer e beber, cuidar da vida alheia, numa bolha de interesses entrópica, mas possuindo dentro de si uma capacidade que supera mesmo a força de reis e guerreiros lendários.
Há assim tanta diferença entre improváveis heróis que destroem um anel amaldiçoado contra um tirano e improváveis heróis que salvam uma forma de vida inteligente de ser dissecada pelo sistema, numa história de amizade, coragem, amor, tolerância e individualização?
Quem viu n’A Forma da Água somente “lacre”, seja para celebrar, seja para maldizer, aconselho com mais fervor a leitura d’A Luneta Mágica, mencionada algures neste texto, porque pode ser que você esteja condicionado a ver as coisas de certo modo, inclusive da forma que o criador da obra ou a mídia queira que você veja.
A interpretação é livre e depende de você.
O sistema oprime a todos, mas o sistema também somos nós, embora “uns sejam mais iguais que os outros”, como consta na grande obra A Revolução dos Bichos, de George Orwell.
É certo que alguns grupos sequestraram a democracia e mesmo a busca por dignidade e tratamento igualitário entre as pessoas, colocando tudo sob uma cartilha ideológica e sob a forma do politicamente correto, o que amplia o abismo e as diferenças, aumentando o ódio e criando problemas, sempre com o objetivo de lucrar, seja financeira, seja politicamente.
Mas, mesmo sem a ajuda dessas figuras e partidos, o ódio existe e o preconceito é uma realidade, e isso remonta há milênios de história, não importa o motivo que leva ao ostracismo e à condição de pária social, o que vale mesmo para pessoas socialmente em patamares elevados, mostrando que o horror não se exaure na riqueza.
Por isso admitir o outro e permitir que ele seja pleno, considerando que sua individualização não consista em violar direito alheio, é, além de um ato de fraternidade, uma vantagem que se obtém: pessoas completas sanam a morbidez social.
Como um estranho, afirmo que gostei do filme para além das cartilhas ideológicas e convido quem quiser a tentar um novo ângulo de visão, sem medo do que é diferente. Ouvir La Javanaise, na versão de Madeleine Peyroux, e cultivar o ódio, estou seguro em dizer, é impossível.
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.