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A ARMA DO CAIPIRA OU A LETRA QUE MATA

Eduardo Perez
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A ARMA DO CAIPIRA OU A LETRA QUE MATA

Se fazer justiça é apenas repetir a lei, os juízes podem ser substituídos por máquinas. Mas não estaria a justiça oculta por trás da letra fria?


Realço que o presente artigo acadêmico não se trata de crítica a qualquer pessoa ou a decisão específica, mas uma oportunidade de refletir sobre a relevância da hermenêutica jurídica e o papel do magistrado no sistema de justiça dentro do aspecto doutrinário.


Dito isso, lembro que quando era pequeno gostava muito de ler os gibis da Turma da Mônica e me veio à memória uma história contada por Chico Bento.


No interior havia um jovem que queria enriquecer e fez um pacto com o tinhoso: em troca de sua alma o cramulhão lhe daria riquezas, mas dentro de algumas décadas o buscaria para o inferno.


Dito e feito. O menino enriqueceu, casou, teve filhos, e um dia o vermelhão (o Diabo, não Stálin) bate à sua porta exigindo a contraprestação. O caipira pede um momento, entra na casa e volta com um revólver para entregar ao capeta.


“Esse não é o combinado", disse o cornudo. “Uai, eu prometi pra vosmecê minha arma, tá aqui ela”, respondeu o caipira. E foi-se o satanás bufando de raiva com seu 38.


Essa história é muito didática. Quem está lendo sabe que na fala caipira emulada nas histórias do Chico Bento troca-se o “L” pelo “R” em algumas palavras: alma vira arma, alto vira arto, e  assim por diante, de forma que acredita, juntamente com o capeta, que a pessoa estava vendendo sua “alma”, e não sua “arma”.


Para a anedota isso faz todo sentido, mas não funciona na sociedade. 


Não por acaso o Código Civil trouxe como um de seus elementos essenciais a boa-fé objetiva, ou seja, não vale só a boa intenção de quem fala, mas o contexto e a justa expectativa das pessoas com quem interage: seja a outra parte no contrato, seja o juiz no processo, ou seja até a própria sociedade quando se trata do agente político, nessa esfera incluída também a Magistratura.


Um exemplo é a vedação à reserva mental (art. 110 do Código Civil), na qual se considera aquilo que a pessoa efetivamente se obrigou, e não aquilo que intimamente tinha vontade.


O apego excessivo à forma pode chegar a perverter toda a intenção por trás do contrato ou da lei.


Até por isso a Bíblia, no Novo Testamento, já advertia para a importância de reparar não na letra que mata, mas no espírito que vivifica (Coríntios 3:5-6).


Veja-se o exemplo da versão para o cinema do Auto da Compadecida, na qual Chicó afiança que seu sogro poderá tirar-lhe uma tira de couro caso não pague o empréstimo feito. Descumprida a obrigação, na hora de cobrar o “couro” do devedor, intervém João Grilo falando que no contrato nada fala de sangue, de forma que o couro só pode ser retirado sem derramar sangue.


Trata-se de uma versão inspirada, ainda que bem menos trágica, na condição do judeu Shylock no tribunal veneziano, na peça “O Mercador de Veneza”.


A qualquer um restaria evidente que um contrato que diga que o outro deve dar uma libra de carne sua em caso de inadimplemento já prevê também o sangue.


Para quem acha que isso é coisa de novela, lembro que uma vez julguei um caso no qual as partes haviam entrado em acordo sobre a divisão de uma vasta área de terra que estava na posse só de um deles. Porém, quando os outros foram ingressar no pedaço que lhes cabia, o posseiro original negou, dizendo que tinha feito o acordo sobre a propriedade, mas nada tinha falado sobre o posse, o que lhe rendeu uma condenação por litigância de má-fé de algumas dezenas de milhares de reais.


Embora o Judiciário esteja adstrito à lei ele não é seu mero repetidor, a boca da lei, como pretendia Napoleão, mas é seu intérprete e se vale nesse trabalho da visão de várias pessoas, não apenas dos tribunais e juristas, mas também do leigo e dos costumes.


Vale lembrar que a função das leis não é submeter a realidade às intenções dos legisladores, como às vezes ocorre, mas de regular a forma como nós humanos interagimos com a realidade.


A Pôncio Pilatos foi dado lavar as mãos quanto ao cumprimento da lei, mas o mesmo não se pode dizer dos magistrados que precisam dar uma solução eficiente para os litígios que lhe são postos, sem tergiversar, sem desviar de sua finalidade e, principalmente, atentos aos fins social da lei e às exigências do bem comum. 


E não sou eu que digo, mas é norma de aplicação obrigatória prevista no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.


Porém, quando novas normas surgem é natural que se venha a discutir sua aplicabilidade, como é o caso do parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal:


Art. 316. (…)


Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. 


A princípio, parece claro que quem mandou prender precisa revisar a necessidade da prisão a cada 90 dias, sob pena de tornar-lá ilegal.


Analisando apenas um aspecto de vários possível, convém recordar que o juiz, quando sentencia, exaure sua jurisdição, isto é, não pode mais falar de novo naquele processo a não ser quando for para cumprir o que foi sentenciado.


A exceção é algum erro material, um erro de digitação, por exemplo, ou embargos de declaração.


Com o recurso o processo “sobe”: vai para o tribunal e depois pode ir para o Superior Tribunal de Justiça e até ao Supremo Tribunal Federal.


De que forma o juiz, que exauriu sua jurisdição, irá lançar novas decisões nos autos nos quais ele é incompetente e sequer estão com ele, mas com a instância superior?


Pelo sistema, impossível. Parece evidente que no cipoal de normas brasileiras situações assim aconteçam, o que demanda uma necessária interpretação, por exemplo, incumbindo quem estiver com o processo de reexaminar a necessidade de prisão.


De outra forma seria forçar quem não está com os autos, que não sabe como estão tramitando, a que dê um  “tiro no escuro”, e aí sim estará feita a injustiça, seja para prender, seja para soltar.


Mais grave ainda é desconsiderar o acúmulo de trabalho absurdo dos juízes criminais para lançar ilegalidade em algo que pode ser uma mera burocracia, dando azo a decisões que colocarão em liberdade indivíduos que representam real risco para a sociedade e vulnerando o mencionado art 5º da LINDB.


Se fossem os juízes os meros aplicadores da lei, nos moldes simples das operações matemáticas de soma e subtração, mais barato ao contribuinte seria substitui-los por máquinas: o sistema mesmo acusaria o excesso de prazo de 90 dias e expediria automaticamente o alvará de soltura.


Para que juiz, promotor, desembargador, defensor e ministro? Qualquer sistema automatizado, e não estamos falando nem em inteligência artificial, pode fazer isso.


Se a questão é binária, sim ou não, a máquina pode identificar. O desafio é outro: a humanidade se encontra nas infinitas variações fractais entre o sim e o não, as imensuráveis possibilidades de interação, de causa e consequência, que apenas um ser humano, que é razão e emoção, pode sopesar e aplicar.


Tanto é verdade essa demanda pela hermenêutica que no Habeas Corpus n. 189.948/MG, em decisão datada de 20.08.2020, entendeu o ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal que, ultrapassado o prazo de noventa dias, não haveria o direito imediato de soltura, sendo o objetivo da lei evitar prisões processuais alongadas, especialmente para aqueles sem assistência adequada, e que seria necessário determinar que o juiz faça a reanálise da prisão.


A bem dizer, o Direito não é um fim em si mesmo, ele não é um palco para que nele doutrinadores e julgadores brilhem, não é nem mesmo um espaço para ganhar dinheiro: o Direito é a alternativa à barbárie.


Sem ele, sem leis que regulem e que valham para todos, que não criem privilégios odiosos nem pessoas impunes, a alternativa é a lei da selva, a matsaya nyaya dos hindus, a regra de que o peixe grande sempre come o peixe pequeno.


E o mesmo que vale para a interpretação literal vale para o seu oposto, o ativismo: se ao Judiciário não é conveniente repetir apenas a lei, também não é dado criá-la, contrariá-la ou pervertê-la. E muito pior é quando o magistrado é incoerente: em alguns casos repete a lei, em outros, é ativista.


Lembremos de Adolf Eichmann, o alemão nazista que foi responsável pela morte de milhões de judeus, embora nunca tenha dado um único tiro, pois sua função era organizar de forma exemplar o transporte de prisioneiros.


Quando interrogado em Nuremberg disse não se sentir culpado, pois estava apenas cumprindo sua obrigação.


É tentador anular a moralidade de sua conduta lançando a responsabilidade sobre o sistema, sobre Deus, o diabo, as leis ou seu chefe. “Estou só fazendo minha obrigação, nada pessoal”, “cumpro o que a lei manda, é o que está escrito”.


Ás vezes a lei é clara, e na clareza cessa a interpretação, como diria o adágio latino, mas às vezes, o mais das vezes, é preciso ir para além da letra fria e dar vida à norma.


Pôncio Pilatos apenas lavou as mãos. Eichmann apenas cuidava da organização do holocausto nazista.


Um juiz que nunca perdeu o sono, que nunca se desesperou, que trata de lei da mesma forma que um açougueiro embrulha um pacote de carne é juiz só na letra.


A mesma letra que mata, e como mata.